Rei, Reino e reinado de Deus na Mariologia

Rainha dos anjos

tu nos apareces viva e verdadeira, Maria,
na integridade do teu estupendo e inocente ser,
na beleza espiritual e corpórea
de toda a tua imaculada humanidade
no vital e extático triunfo
próprio da ressurreição da mais pura,
bondosa, mulher ideal e mais real
que a terra já produziu
e que o céu guardará para sempre.

Santos, oradores, artistas, poetas
deram-lhe imagens de lirismo incomparável. 
A visão de ti na glória e na plenitude da vida,
enquanto enche a alma de alegria e oração, 
reflete em nosso mundo a sabedoria que deve nos guiar.

Se o nosso destino é diferente do seu destino, 
o destino final que em vós foi imediatamente cumprido 
e antecipado no dia da alegria final
em que a morte será vencida e a carne humana ressurgirá,
semelhante à sua Mãe celestial, não é diferente.

Foram os anjos que te levaram ao céu. 
Santa Maria serão os puros que lá em cima se juntarão a ti.

São Paulo VI

1 – Reinado de Deus

Pelo fato de ser criador, Deus é rei de sua criação, possui total poder sobre ela, goza de uma realeza inalienável sobre ela.

Como essa realeza decorre necessariamente da criação, tanto no sentido da produção dos seres quanto de sua permanência na existência, ela não pode ser delegada a mais ninguém. Nossa Senhora, portanto, não participa dessa realeza do Criador.

Mas ela está na melhor posição, como mãe do Criador, para compreender, admirar e adorar esta realeza. Ela é sua primeira adoradora. E aqui realmente vemos um dos aspectos do Magnificat. Maria exalta a Deus e se alegra nele, porque este Rei eterno se dignou olhar para ela apesar de sua pequenez, porque realizou grandes coisas nela, porque governa o universo com misericórdia e justiça, porque cuidou especialmente de seu povo Israel.

No Antigo Testamento, a realeza de Deus é um tema importante, que inspira oráculos proféticos e sobretudo numerosos salmos. Maria lia, recitava e meditava assiduamente estes textos grandiosos. Ninguém melhor do que ela compreendeu a sua insondável riqueza e ninguém mais do que ela se deixou levar por aqueles textos na grande corrente de adoração que os anjos cantam sem fim perante a mais perfeita das criaturas.

Durante sua existência terrena, ela foi a primeira adoradora da realeza de Deus, e agora no céu, como rainha dos anjos, ela é a rainha dos adoradores desta realeza!

Quando as ladainhas dizem que Nossa Senhora é:

  • a rainha dos anjos,
  • a rainha dos patriarcas, 
  • a rainha dos profetas, 
  • a rainha dos apóstolos,
  • a rainha dos mártires, 
  • a rainha dos confessores, 
  • a rainha das virgens, 
  • a rainha de todos os santos, 

A palavra “rainha” não é em sentido estrito, pois não implica verdadeira realeza; quer simplesmente atribuir a Maria o termo mais nobre possível, evocar a sua grandeza e a sua santidade, que a colocam acima das mais perfeitas criaturas de Deus e acima das mais veneráveis ​​personagens da humanidade.

Em que sentido se pode dizer que a Nossa  Senhora é rainha? 

O termo “rainha” é usado em três situações diferentes: 

1) para uma governante que é mulher; 
2) para a esposa de um rei; 
3) para a mãe de um rei. 

Os dois primeiros significados devem claramente ser excluídos no caso de Nossa Senhora, mas o terceiro lhe convém perfeitamente, já que é a mãe de Jesus, rei da criação e rei de seu reino espiritual. Chamar Nossa Senhora rainha significa reconhecer a sua maternidade divina e a realeza de Jesus, seu Filho, que é Deus.

O poder real de Deus 

O poder real de Deus, isto é, a ação que Deus exerce sobre os fiéis para transformá-los e torná-los justos, pode ser considerada sob dois aspectos: 

  • tanto do lado de Deus que exerce esta ação, que justifica, que governa, 
  • quanto do lado do fiel que aceita esta ação de Deus, que se submete a ela, que adere com maior ou menor intensidade à vontade de Deus para com ele. 

Para expressar claramente esse duplo aspecto, seria necessário saber usar a passiva do verbo reinar: Deus reina e o fiel é «reinado».

Se aplicarmos esta distinção à Nossa Senhora, evidentemente ela não tem um papel direto no poder real em relação a Deus, mas sim um papel indireto. Quando pedimos no Pai Nosso: “Venha a nós o vosso reino”, imploramos a Deus, com audácia sem precedentes, que estenda e intensifique a sua ação nos nossos irmãos e irmãs. 

Nossa Senhora viveu plenamente o Pai Nosso, mesmo antes de ser dado por Jesus como oração oficial aos discípulos; depois que Jesus o compôs, ela penetrou em todas as suas riquezas melhor do que ninguém. Além disso, se nós, pobres pecadores, podemos rezar para que venha esta ação soberana de Deus em nós e nos outros, quanto mais e melhor Nossa Senhora faz esta oração e não cessa de oferecê-la ao céu!

Nossa Senhora é a primeira a implorar a Deus que reine nos fiéis. Seu papel, porém, é ainda maior quando o poder régio de Deus é considerado no aspecto do fiel que o recebe, que é “reinado“.

Por causa de seu infinito respeito pela liberdade das criaturas humanas, Deus não quer impor sua soberania e sujeitar à força os fiéis à sua ação. O velho ditado é conhecido: Quidquid recipitur, ad modum recipientis recipitur (aquilo que é recebido toma a forma do recipiente). A ação soberana de Deus em cada fiel depende, de fato, da receptividade do fiel. 

Que mulher foi mais receptiva do que Maria? 

Nela Deus tinha, por assim dizer, as mãos livres. Nunca a menor resistência deteve, seja ela qual for, a ação de Deus no Coração da Imaculada Conceição. Maria foi a obra-prima do poder real de Deus e a mais bela de suas realizações.

A sua inteligência sempre aceitou, sem a menor resistência, toda a luz que Deus quis derramar sobre ela. Sua inteligência foi toda iluminada por essa luz, e a ela se entregou sem constrangimento, sem o obstáculo daqueles julgamentos pessoais dos quais não podemos nos livrar. Já na terra Deus reinou em sua inteligência, como agora reina no céu. Nossa Senhora é a mãe da fé, nas palavras de Isabel: «Bem-aventurada aquela que acreditou no que o Senhor lhe disse» (Lc 1,45).

A sua vontade nunca quis ter um objeto próprio, porque ela desejava com demasiada intensidade a vontade de Deus para poder dispersar-se noutras coisas. O fiat da Anunciação não tem o sentido de resignação que tantas vezes lhe damos: “Como tal prova não pode ser evitada, meu Deus, fiat!“. 

Em hebraico é a terceira pessoa do imperativo do verbo fazer, é uma ordem dada para que algo seja feito. Nossa Senhora não se resignou à Encarnação, positivamente a quis, porque Deus a quis e porque Deus quis que ela a quisesse. E esta adesão à sua vontade foi a disposição invariável da sua pessoa em todas as circunstâncias da sua vida, tanto nas mais importantes como nas insignificantes.

Esta perfeita fusão da inteligência e da vontade de Maria na inteligência e vontade de Deus permaneceu perfeitamente livre, não foi como se estivesse petrificada de antemão nas mãos de Deus, deixou-se conduzir por seus impulsos.

É este poder real de Deus em Maria, com o seu pleno consentimento, que ela venera e procura imitar a devoção ao Imaculado Coração de Maria.

Reino de Deus

Hoje em dia tendemos a referir o Reino de Deus no fim do mundo, contudo textos claros, por outro lado, afirmam que o Reino de Deus já existia no tempo de Jesus e dos apóstolos. Basta recordar as invectivas de Jesus contra os seguidores da lei 

  • Lc 11,52 «Ai de vós, doutores da lei, que tirastes a chave da ciência; vós mesmos não entrastes, e impedistes os que entravam»
  • Mt 23,13 «Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas! Vós fechais aos homens o Reino dos Céus. Vós mesmos não entrais e nem deixais que entrem os que querem entrar» 

Todos os verbos estão no passado. Como também em São Paulo: «sede contentes e agradecidos ao Pai, que vos fez dignos de participar da herança dos santos na luz. Ele nos arrancou do poder das trevas e nos introduziu no Reino de seu Filho muito amado» (Col 1,12-13). Novamente, todos os verbos estão no pretérito. Assim também na Carta de Tiago 2,5: «Não escolheu Deus os pobres do mundo para torná-los ricos na fé e herdeiros do reino?». E também no Apocalipse: «aquele que nos ama e nos libertou dos nossos pecados com o seu sangue, que nos constituiu um reino de sacerdotes para o nosso Deus» (1,5-6). E quase nos mesmos termos: «Tu foste imolado e com o teu sangue resgataste para Deus pessoas de todas as tribos, línguas, povos e nações, e fizeste deles um reino de sacerdotes para o nosso Deus» (Ap 5,9-10). 

Como podemos ver, todos os verbos estão no pretérito. Certamente, em outros lugares, outros verbos também estão no presente ou no futuro, mas isso prova que o Reino de Deus, assim como a Igreja, não é simplesmente uma realidade do passado, mas continua no presente e continuará no futuro até a eternidade.

Tendo assim reconhecido a identidade entre o Reino de Deus e a Igreja, chegamos à mesma definição para ambos: tanto o Reino como a Igreja são Jesus e aqueles que formam o seu povo ou o seu corpo. São Paulo especifica que Cristo é a cabeça da Igreja (Ef 5,23) ou que ele é “a cabeça do corpo (que é) a Igreja” (Cl 1,18). Se tomarmos a imagem, também bíblica, do povo de Deus, este povo não pode separar-se do seu chefe, do seu rei, e por isso forma um reino. É claro que, embora a realidade objetiva do reino seja idêntica à da Igreja, os dois conceitos não são de forma alguma idênticos e têm conotações diferentes. 

O reino é uma noção semita, que insiste na presença do rei; a Igreja é a noção grega que destaca especialmente os homens que vivem nesta comunidade. Mas, além dessa diferença de ponto de vista em nossos conceitos subjetivos, estamos sempre lidando com a mesma realidade vista de dois ângulos diferentes.

Qual é então o lugar de Maria neste Reino de Deus, ou seja, na Igreja? 

Costuma-se dizer que a Igreja começou tanto no Calvário quanto no Pentecostes. Mas o Evangelho relaciona explicitamente o Reino de Deus com a pregação de João Batista: «Desde os dias de João Batista até agora, o reino dos céus (= de Deus) sofre violência e os violentos se apoderam dele. Porque a lei e todos os profetas profetizaram até João» (Mt 11,12-13).

Assim, parece que o Reino de Deus, que já existia no tempo de João Batista, realmente se reuniu na Encarnação. Ora, como vimos, o que se diz do reino diz respeito à Igreja. Ao responder “sim” à Anunciação, Nossa Senhora permitiu que Deus realizasse a Encarnação e ao mesmo tempo inaugurasse o seu reino. O título de “Mãe da Igreja”, conferido oficialmente a Nossa Senhora pelo Papa Paulo VI, é portanto plenamente justificado.

Maria é a primeira criatura a fazer parte da Igreja e todos nós somos seus remotos sucessores. Ao dar a Jesus o corpo físico, ela também lhe deu o corpo espiritual, que é a Igreja, da qual ela é a primeira a pertencer e da qual nós pertencemos depois dela, como ela e com ela.

Todos os acontecimentos posteriores da vida de Jesus, incluindo a sua Paixão, a sua Ressurreição e a Sua Ascensão, fazem parte do desenvolvimento deste reino e, portanto, do florescimento da Igreja.

Da mesma forma, todos os acontecimentos da vida de Nossa Senhora, incluindo a Purificação, o encontro no Templo, a intervenção em Caná, a presença junto à cruz, fazem parte da vida da Igreja e constituem os primeiros pontos do bordado que Deus continua tecendo através de nós. 

Esta pertença de Maria ao Reino de Deus e à Igreja, à qual também nós pertencemos, manifesta entre ela e nós uma comunhão, um parentesco, do qual talvez não tenhamos plena consciência.

Assim como ela podia chamar a Igreja a que pertencia de “minha Igreja“, também nós podemos dizer com ela “nossa Igreja”.

É assim que devemos ver os eventos futuros que marcarão o futuro do Reino de Deus: a Parusia, a ressurreição geral, o juízo final, a oferta ao Pai. Todos estes acontecimentos serão também eclesiais.

A Parousia, ou retorno de Jesus, continuará a sua primeira vinda: o fiat de Maria permitiu a primeira e permitiu também a segunda, pelo próprio fato de tê-la pronunciado uma vez para sempre em nome de toda a humanidade.

Quanto à ressurreição geral, se Nossa Senhora ressuscitou antes de sua Assunção, ela se tornou a primeira pedra viva da Igreja, a primeira filha do Reino de Deus que triunfou sobre a morte, precedendo-nos seguindo Jesus. 

Em relação ao juízo final, as nossas ideias correm o risco de serem distorcidas, pois nas línguas modernas o termo “juízo ” é frequentemente tomado em sentido pejorativo: assume um possível culpado e é exercida de cima para baixo, no sentido de que o juiz tem uma autoridade superior à daquele que está sendo julgado. 

Nada disso existe na língua hebraica, onde julgar significa “tomar uma decisão”, que pode ser tanto favorável quanto desfavorável. É neste sentido que, segundo São Paulo, julgaremos os anjos: isto é, seremos todos associados à manifestação do desígnio eterno de Deus, às maravilhas da sua graça, misericórdia e justiça, tanto para com os anjos como para com homens e outras criaturas. E como nós, simples humanos, aplaudiremos esta maravilhosa ação de Deus – este mystèrion, como diria São Paulo -, é claro que também Nossa Senhora participará dela.

Cantaremos com ela o cântico do Apocalipse (15,34; 16,5-7; 19,1-8). E entre os triunfos da graça, admiramos especialmente os relativos à Imaculada Conceição, o Kekaritomene, a Virgem da Encarnação, a Theotokos, a Mãe que está junto à cruz, a primeira criatura humana prostrada de corpo e alma em eterna adoração.

A oferenda ao Pai, de que nos fala São Paulo (1 Cor 15,22-28), será a entrada solene de todos os justos com a sua alma e com o seu corpo na sua vocação definitiva, no aleluia perpétuo pelo qual eles foram criados. 

Nossa Senhora, por sua vez, já estava totalmente imersa nesta adoração desde a Assunção. Mas, sendo ela a Mãe da Igreja, poderá então oferecer ao Pai, em união com Jesus, o corpo espiritual de Cristo que finalmente atingiu a sua plenitude («Até que todos cheguemos à unidade da fé, e ao conhecimento do Filho de Deus, o homem perfeito, à medida da estatura completa de Cristo» Ef 4,13). 

E esta oferta não será apenas o dos frutos do seu fiat inicial, mas também o dos frutos obtidos através da sua mediação. Com efeito, no momento desta oferenda ao Pai, que representará o advento do Reino de Deus em pleno florescimento, o poder real e o Reino de Deus encontrar-se-ão unidos. O poder real de Deus, que é a sua ação santificadora nas almas, realiza-se em todos os homens de boa vontade, cristãos ou não. 

O Reino de Deus, que é a Igreja, inclui tanto os justos como os pecadores, como as parábolas do joio, da pesca milagrosa, das dez virgens e, ainda mais claramente, a descrição do juízo universal em Mt 25,31-46. Para que, no fim do mundo, todos os bons pagãos, todos os filhos do poder soberano de Deus, todos fiéis santificados ou justificados se encontrem no Reino de Deus, enquanto todos os maus filhos da Igreja, pecadores impenitentes, serão excluídos deste mesmo reino (Mt 13,39-42; 25,46; Ap 21,8). E esta oferta continuará por toda a eternidade!

Aqueles que ligam a fundação do Reino de Deus com o fim do mundo, numa escatologia imaginária, cortam Nossa Senhora e também nos excluem de uma continuidade vital com essas realizações essenciais. 

São Paulo, ao contrário, nos diz: «Como todos morrem em Adão, assim todos receberão a vida em Cristo. Mas cada um na sua ordem: primeiro Cristo, que é a primícia; então, para sua Parousia, aqueles que pertencem a Cristo; então será o fim; quando entregar o reino a Deus Pai» (1 Cor 15,22-24). E todo o Reino de Deus, portanto toda a Igreja, que participará destes grandes acontecimentos: logo depois de Cristo, sua Mãe e aos poucos todos nós.

É uma teologia da esperança que poderia ser vista de modo novo, se se sublinhasse a continuidade orgânica do Reino e da Igreja, fundada no momento da Encarnação, que se desenvolve até à Parusia, abrindo-se na glória do Pai. A esta esperança estaria intimamente associada Maria, porque seria a nascente do vasto rio que deságua na eternidade, e do qual cada um de nós é uma gota.

Todos esses pontos merecem uma reflexão mais profunda, a fim de extrair deles todo o potencial possível. Mas são indícios que ao menos nos deixariam ver que as perspectivas de realização do Reino, como as de sua fundação, se renovam profundamente se se aceita reconhecer a equação: Reino=Igreja. Maria, então, que participou do nascimento da Igreja, vem participar também de sua coroação celeste como rainha dos anjos; assim como nós, os membros da Igreja, participaremos.

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Maria Rainha dos Anjos

A Igreja canta, em seus ofícios, que foi exaltada acima dos coros dos anjos. A Virgem é mais venerável que os querubins, incomparavelmente mais gloriosa que os serafins. 

O título de Rainha do universo e de todas as criaturas, embora nunca tenha sido objeto de definição pelo magistério solene da Igreja, é proclamado pelo magistério ordinário, não só na pregação dos Padres da Igreja, mas também pela liturgia de todas as igrejas do Ocidente e do Oriente.

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