Das graças à Graça de Nossa Senhora

Das graças à graça, o grande dom de Deus, à luz do Novo Testamento

Se existe uma noção, ou melhor, um acontecimento central na Bíblia, é precisamente a graça, ou a gratuita benevolência divina, que percorre os dois Testamentos até tornar-se o evangelho da graça. É o transbordar do amor divino para com as criaturas humanas, tornando-as participantes da vida trinitária. 

O primeiro e supremo dom que Deus concede às suas criaturas é o amor que lhes tem e, ao mesmo tempo, o penhor infinito com que coloca esse amor. E através desta primeira efusão de si, na qual se derrama, como uma onda infinita, a corrente do amor divino transborda também para fora para submergir as criaturas com a abundância de dons.

Ao mesmo tempo, não existe tema que necessite mais de renovação do que a graça, já que assim foi definido e considerado uma quantidade e não uma qualidade.

Pensemos por momentos que São Bernardo chama de aqueduto à Virgem Maria que nos compensa com o fluir da graça. Esta forma de pensar levou a obscurecer outros elementos  interpretativos, que não são alternativos, mas cumulativos, da relação com o Espírito Santo no mistério da graça:

  • divinização;
  • acontecimento dialógico
  • relação vital;
  • humanização.

A graça é um acontecimento dialógico ou uma relação viva de amor e salvação.

O que une os dois Testamentos é o tipo particular de relação, o ato de condescendência e de amor, que Deus mantém com o homem e com o mundo. A graça é um acontecimento ligado ao acontecimento da vinda do Verbo entre nós porque da sua plenitude recebemos graça sobre graça  (Jo 1,16).

Assim sendo, a graça tem uma estrutura dialética, envolvendo a oferta de amor por parte de Deus e a resposta de amor por parte dos seres humanos. A feliz notícia assume a forma do evangelho da graça. A graça não pode ser concebida como destruidora da natureza do homem, que seria anulada pela sua ocorrência, pelo contrário ela exige e suscita a resposta humana.

Pensemos por momentos: a graça de Deus vem a nós segundo o modo como o Santo  Espírito atua, como uma força, um movimento interno que não coage a pessoa, mas a desperta e a põe em movimento. Nisso, Deus tem a iniciativa como na criação. Mas não se trata de um dom que bloqueia o caminho do homem para a liberdade, orientando-o na direção oposta à sua visão de valores. A gratuidade da graça não pode estabelecer uma espiritualidade da aniquilação do homem, como aconteceu no passado, especialmente nos séculos XVI e XVII.

Em sentido contrário, sendo relação, a graça envolve a pessoa, que deve acolhê-la para que se transforme em verdadeiro dom. A graça torna-se um encontro pessoal entre Deus, que se coloca no acontecimento Cristo, palavra salvífica definitiva do Pai, e onde responde acolhendo a graça e vivendo em coerência com este dom. 

Não é uma questão de instantes, porque a economia da salvação implica um longo processo educativo através do qual o homem torna-se Deus (Santo Agostinho).

A graça é a participação na vida divina

A graça é a comunhão imediata com o Pai por meio de Cristo no Espírito. É um processo educativo que ajuda o ser humano, criado à imagem de Deus, a libertar-se do pecado e a alcançar a divinização (theosis). Isso se resume na frase dos padres gregos: «Deus se fez homem, para que o homem se tornasse Deus». E aqui o Novo Testamento fala da efusão do Espírito como princípio do renascimento (Jo 3,3,5-7), da vida nova (Rm 5,5; 6,4), da vida filial (Rm 8,15-16 ; Gal 4,6) e da vida eterna (Rm 6,23).

A justificação do mistério pascal me coloca em um novo relacionamento com Deus. Mas o renascimento transforma a minha substância interior, me dá uma nova semente de vida, coloca um novo eu dentro de mim e me renova em minha maneira de encarar e viver a vida.

A graça é o maior valor da vida: um acontecimento dialógico, uma relação viva entre Deus e o ser humano. A graça implica dois elementos: 

  • a atitude benevolente e favorável de Deus para com o homem, que se traduz numa relação de amor e numa comunicação da vida divina que percorre toda a história da salvação, desde a criação até à escatologia;
  • a aceitação por parte dos membros do povo de Deus, especialmente dos batizados, do dom do renascimento para uma vida nova e divina inserida no coração do homem pelo Espírito Santo, que nos compromete a uma existência de fé, digna do dom recebido.

Maria e a graça à luz do Novo Testamento

Se abrimos o Novo Testamento percebemos que a doutrina sobre a graça se encontra personalizada, depois no protótipo supremo que é Cristo cheio de graça e de verdade (Jo 1,14), na figura de Maria ligada à graça por dois vínculos principais: 

  • a benevolência do Pai, ou seja, daquele olhar benigno que é como o resumo da obra de Deus no Antigo Testamento, 
  • a mãe do Verbo Encarnado que é por ele reconhecida como mãe na ordem da graça com relação aos seus discípulos amados.

Uma teologia da graça não pode mais deixar de levar em consideração a história e a presença daquela que é cheia de graça (Lc 1,28).

Há legitimidade do título «Nossa Senhora das Graças»?

Em primeiro lugar, o título Nossa Senhora das Graças baseia-se no fato de que a Virgem de Nazaré se torna participante dos carismas que o Espírito concede aos membros do povo de Deus para a edificação da Igreja.

Os Atos dos Apóstolos atestam que Maria estava entre todos aqueles que foram cheios do Espírito Santo e começaram a falar em línguas e a profetizar. Não há razão para negar os dois carismas de glossolalia e profecia à experiência pentecostal da Mãe de Jesus.

Uma vez glorificada em corpo e alma pela Assunção, Maria torna-se uma manifestação do Espírito e do seu poder. Ela é reconhecida como taumaturga, ou seja, permanentemente dotada do carisma de realizar prodígios, curas e milagres de todo tipo, conforme documentado pela história dos fiéis e dos santuários.

Reconhecer Maria cheia de carismas evidencia o seu protagonismo salvífico, fruto do amor de Deus por ela. Ao atribuir-lhe o título de medianeira [em Cristo], sai-se do isolamento para colocar Maria em relação com Deus e com os homens; é consequência do princípio da globalidade, que coloca Maria na história da salvação, em relação com Cristo e com a Igreja.

Maria, cheia de graça e transformada, responde com total disponibilidade

Em Maria converge a real benevolência do Pai que a olha com amor e a enche de graça. O primeiro nome histórico-salvífico de Maria é kecharitòméne (Lc 1,28), isto é, destinatária do amor divino permanente. O particípio passado do verbo charitóo, significa tornar-se agradável, mostrar-se benevolente, indica uma ação de Deus que continua no presente. Mais ou menos este sentido tu que foste e permaneces cheia do favor divino. Gabriel reitera este sentido quando acrescenta: “Não temas, Maria, porque encontraste graça (eures charin) junto de Deus”. Esta expressão “encontraste graça” raramente é usada em relação a Deus (“Noé achou graça diante do Senhor” Gen 6,8) e frequentemente se usa para designar a condescendência de um homem poderoso para com um pobre ou fraco.

Maria “encontrou graça diante de Deus” (Lc 1,30), assim como Ester teve acesso ao rei Assuero e “achou graça aos seus olhos” (Ester 8,5). Deus voltou-se para ela com amor e em um relacionamento amigável. O amor de Deus é eficaz em Maria transformada pela graça, salva-a e abençoa-a, e faz-lhe n’Ela grandes coisas, a começar pela concepção virginal do Filho de Deus.

No fundo, Maria é a primeira a participar da vida nova e divina que é comunicada aos batizados, que vivem em relação viva e vital com as três pessoas divinas. A Mãe de Jesus, além de oferecer o paradigma desta ação de graça operante em seu Kecharitomene, torna-se com a sua vida e a sua presença na cruz do Filho, cooperadora do Espírito no renascimento dos filhos de Deus. Por isso é declarada mãe na ordem da graça (Jo 19,25-27).

A relação de Maria com o batismo, como intuiu Agostinho e reafirmou o Concílio Vaticano II, deriva do fato que Maria é a mãe dos fiéis porque participou dos mistérios redentores da vida de Cristo (Lumen Gentium 61), e também porque atualmente colabora com amor maternal na geração e formação dos fiéis (Lumen Gentium 63). 

O Concílio sublinhou esta realidade, mantendo expressamente o termo gerar, com referência ao texto de S. Agostinho: Maria colaborou na caridade no nascimento dos fiéis na Igreja. Trata-se, portanto, de uma intervenção da Virgem no próprio ato do batismo, pelo qual os homens são regenerados para uma nova vida em Cristo. 

Em conclusão, este é também o convite de Bento XVI em sua peregrinação a Etzelsbach (23 de setembro de 2011), quando nos exorta a passar das graças experimentadas no recurso a Maria em momentos particulares à resposta permanente de amor ao longo de nossa existência:

«da Cruz, do trono da graça e da redenção, Jesus deu aos homens a sua Mãe Maria como Mãe. No momento do seu sacrifício pela humanidade, ele torna Maria de certo modo mediadora do fluir da graça que vem da cruz. Junto à Cruz, Maria torna-se companheira e protetora dos homens no caminho da vida. ‘com a sua caridade materna cuida dos irmãos do seu Filho, ainda errantes e colocados no meio de perigos e dificuldades, até serem conduzidos à pátria bem-aventurada’ (Lumen Gentium, 62), como o exprime o Concílio Vaticano II. Sim, na vida passamos por altos e baixos, mas Maria intercede por nós junto ao seu Filho e nos ajuda a encontrar a força do amor divino do Filho e a nos abrir a ele. […] A nossa confiança na intercessão eficaz da Mãe de Deus e nossa gratidão pela ajuda sempre nova experimentada carregam de alguma forma o impulso de levar a reflexão para além das necessidades do momento. […] O que Maria realmente quer nos dizer quando nos salva do perigo? Ela quer nos ajudar a compreender a amplitude e a profundidade de nossa vocação cristã. Com delicadeza materna quer que compreendamos que toda a nossa vida deve ser uma resposta ao amor misericordioso do nosso Deus».

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