Maria e Palavra, graça e dabar

A Anunciação: Maria e a Palavra

Tendo precisado, brevemente, o que a Palavra é, agora podemos começar a entender como a pessoa de Maria se relaciona com o evento da Palavra. Todos sabemos que muitos textos do Novo Testamento, embora toquem na questão mariana, são antes de tudo cristológicos. 

O autor que oferece mais informações diretas sobre Maria é Lucas. Em seu relato sobre a Anunciação – Lc 1,26-38 – ele introduz afirmações que dizem respeito direta e exclusivamente a Maria: 

a) a cheia de graça no v. 28;

b) a serva do Senhor do v. 38

c) ou as palavras sobre o Espírito Santo e Maria do v. 35. 

Por esta razão iremos percorrer a perícope de Lc 1,26-38, a narração da Anunciação. Inicialmente esta apresenta a presença do anjo o que remete diretamente à Palavra enquanto a narração se apresenta como uma troca de palavras e silêncios, de propostas e respostas.

O termo que qualifica Maria aqui não é a Palavra, mas a graça, a karis: Maria é apresentada como cheia de graça, kekaritomene como aquela que encontrou graça diante de Deus. Certamente diferentes, os dois termos não são estranhos um ao outro: a graça é uma personificação daquele Deus «misericordioso e compassivo, lento para a ira e rico em graça e fidelidade, que mantém seu favor por mil gerações e se refere à sua natureza como Deus «rico em misericórdia e imenso amor». Até mesmo a Palavra é uma personificação de Deus que designa sua ação e a sua comunicação. 

João irá explicar que a plenitude da graça, da qual todos nós recebemos, se encontra naquele Filho que indicará como o Verbo, como o Verbo que «se fez carne e habitou entre nós». Na prática, hesed e dabar, graça e palavra, são duas personificações teológicas de um só e mesmo Deus. Por isso, o fato de no texto de Lucas a Palavra estar a serviço da graça não nos parece um obstáculo ao nosso tema, mas, de alguma forma, um particular de extrema importância. 

O entrelaçamento dos dois termos tem a vantagem de nos obrigar a voltar rapidamente ao sentido primeiro da graça, aquele que fala mais de Deus do que de Maria, mais daquele que dá a graça do que daquela que a recebe, porque isto é o que qualifica a Virgem Maria, a disponível para receber o dom gratuito e livre do Deus Trinitário. Sem esta precisão de linguagem, e clarificação mariológica a graça pode acabar insensivelmente por indicar o seu oposto, ou seja, o ganho, a quantidade, o benefício da divindade e não o diálogo íntimo do evento que se revela criando na medida em que a Palavra se manifesta.

A Anunciação: uma história que não é mais individual

A história de Lucas começa encenando, com o anjo, uma jovem, «uma virgem, desposada com um homem da casa de Davi, chamado José. O nome da virgem era Maria». A intervenção do anjo no assunto privado destes dois jovens dá uma reviravolta inesperada à sua história: a sua história insere-se num contexto mais amplo, de cariz comunitário exigido pela presença do anjo.

Trata-se do cumprimento do desígnio messiânico de Deus: por isso se pede a Maria – v. 28 – com termos que lembram a filha de Sião, a personificação de Israel. Em si mesmo, o dom da salvação divina repousa apenas na bondade daquele Deus que é amor e não precisaria de uma contribuição humana; no entanto, faz parte da maneira de Deus usar homens justos. Então, quando este plano atinge seu ponto mais alto com o envio do Verbo eterno em forma humana, então a mediação humana de Jesus precisa ser historicizada, precisa de um nascimento de mulher, sob a lei Gal 4,4. No entanto, deve-se ter em mente que Maria não pode ser a causa do que está acontecendo, mas apenas uma condição livremente escolhida por Deus e um sinal da prodigalidade do novo começo.

Maria é esta figura única que torna possível o ‘tornar-se carne do Verbo’; ao mesmo tempo, como representante da filha de Sião, Maria é o ápice da fé de Israel e o início do povo do reino. Desta forma, representa tanto a humanidade que se refere a Deus através da lei e adoração de Israel e aquela que se aproxima de Deus através das bem-aventuranças e fé naquele Jesus que tornou a vida divina verdadeiramente disponível para todos.

Nesse contexto, não existe uma atenção direta à feminilidade de Maria; ainda que o seu ser-mulher naturalmente esteja presente, a atenção teológica centra-se na universalidade de uma relação determinada pelo fato de entrar em relação com aquela paternidade divina que é determinada exclusivamente pela sua relação com o Filho. Também Maria está, portanto, incluída num processo salvífico que é universal, que diz respeito a todos.

A Anunciação: uma maternidade singular

O conteúdo do papel de Maria está inteiramente nas palavras do anjo: tu conceberás um filho, tu o darás à luz e lhe chamará Jesus. Tanto Mateus quanto Lucas trazem essa concepção de volta à obra do Espírito; isto é, esta maternidade não é primariamente obra de uma mulher e sua liberdade, mas é totalmente qualificada pelo Filho a quem ela dá vida por meio do Espírito. Só compreendendo este Filho e o mistério do seu nascimento será possível compreender quem é a mãe.

Enquanto Mateus e Lucas interpretarão essa concepção e esse nascimento como uma maternidade messiânica e virginal, Paulo o enquadrará na kénosis, ou seja, naquela condição particular da qual nascer de mulher seria um sinal. Tradicionalmente, kénosis é derivado do verbo kenóo e lido como esvaziamento, como renúncia; talvez tenha chegado o momento de lê-lo positivamente como revelação, como plenitude de um amor que faz do despojamento o sinal mais evidente de doação.

De maneira ainda diferente, Santo Irineu argumentará que, como o primeiro Adão nasceu sem ser concebido de semente humana, era apropriado que o segundo Adão também nascesse dessa maneira. O sentido dessas indicações é chamar a nossa atenção para o fato de que há muitos padrões de leitura dessa maternidade, muitas maneiras de compreendê-la: o que importa é que elas se referem à concretude de uma maternidade singular.

No entanto, pode-se dizer que a relação materno-filial que une Maria e Jesus vai muito além do projeto humano e parece ser o ato pessoal do Verbo que, mantendo uma relação profunda com as outras pessoas divinas, faz do seu acontecer como carne o dom de si do Pai e do amor criador daquele Espírito, para fazer nascer uma vida totalmente abandonada a Deus.

Na realidade, não é Maria que faz de Cristo seu filho, mas é Cristo que faz de Maria sua mãe. É da Palavra que Maria recebeu a sua singular maternidade; a humanidade de Jesus é gerada e existe somente no momento em que o Verbo a assume e a faz sua e esse momento – que constitui e contém o mistério salvífico da Encarnação – pertence somente a Deus.

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