CONDIÇÕES PARA RECEBER A GRAÇA

A doutrina paulina insiste muito sobre a gratuidade do chamado, por causa da experiência pessoal do perseguidor dos cristãos a uma total pertença ao povo eleito e à graça da justificação, que é o primeiro passo da salvação escatológica: «Assim também agora, em nossos dias, subsiste um “resto”, por livre escolha da graça. Mas, se é pela graça, já não é em razão das obras; do contrário, a graça já não é graça» (Rm 11,5-6); «Que diremos de Abraão, nosso Pai segundo a carne? Que terá ele conseguido? Pois, se Abraão se tornou justo em virtude das obras, ele tem de que se gloriar… mas não aos olhos de Deus! Com efeito, que diz a Escritura? “Abraão creu em Deus, e isso lhe foi levado em conta como justiça”. Ora, para quem faz determinada obra, o salário não é contado como um presente, mas como coisa devida; ao contrário, quem, sem fazer obras, crê naquele que torna justo o ímpio, a sua fé é levada em conta como justiça. É assim que Davi declara feliz aquele a quem Deus atribui a justiça independentemente das obras» (Rm 4,1-6).

A justificação não depende das obras da Lei de Moisés (Torah): «porquanto ninguém será justificado diante dele pela prática da Lei. Pois a Lei dá apenas o conhecimento do pecado. […] Pois julgamos que a pessoa é justificada pela fé, sem a prática da Lei» (Rm 3,20.28). Contudo, Paulo irá afirmar que a recepção da justificação depende do reconhecimento e aceitação do favorecimento de Deus, isto é, da fé: «Com efeito, que diz a Escritura? “Abraão creu em Deus, e isso lhe foi levado em conta como justiça”» (Rm 4,3); «Como Abraão teve fé em Deus, e isto lhe valeu ser declarado justo» (Gl 3,6), esta mesma conclusão encontramos mais tarde nos escritos de João quando afirma: «Jesus respondeu: “A obra de Deus é que acrediteis naquele que ele enviou”» (Jo 6,29); «Quem crê nele não será condenado, mas quem não crê já está condenado, porque não acreditou no nome do Filho único de Deus. Ora, o julgamento consiste nisto: a luz veio ao mundo, mas as pessoas amaram mais as trevas do que a luz, porque as suas obras eram más. Pois, todo o que pratica o mal odeia a luz e não se aproxima da luz, para que suas ações não sejam denunciadas. Mas quem pratica a verdade se aproxima da luz, para que suas ações sejam manifestadas, já que são praticadas em Deus» (Jo 3,18-21); «O vosso pai é o diabo, e quereis cumprir o desejo do vosso pai. Ele era assassino desde o começo e não se manteve na verdade, porque nele não há verdade. Quando ele fala mentira, fala o que é próprio dele, pois ele é mentiroso e pai da mentira. Em mim, pelo contrário, não acreditais, porque falo a verdade. Quem de vós pode acusar-me de pecado? Se eu digo a verdade, por que não acreditais em mim? Quem é de Deus escuta a Palavra de Deus. Vós não escutais, porque não sois de Deus”» (Jo 8,44-47).

Na realidade, a graça chega ao homem através da fé, o justo vive através da fé: «Nele se revela a justiça de Deus, que vem pela fé e conduz à fé, como está escrito: “O justo viverá pela fé”» (Rm 1,17). Portanto a fé não é apenas um consentimento mental mas inclui em si o ato de obediência daquele que dispõe a sua vontade na adesão a Deus com activa cari(s)dade: «Mas nem todos obedeceram à Boa Nova, pois Isaías diz: “Senhor, quem acreditou em nossa pregação?”» (Rm 10,16); «para punir aqueles que não conhecem a Deus e os que não obedecem ao Evangelho de nosso Senhor Jesus» (2 Tess 1,8); «Com efeito, em Jesus Cristo, o que vale é a fé agindo pelo amor; ser ou não circuncidado não tem importância alguma» (Gal 5,6); «Ser ou não circuncidado não tem importância alguma. O que conta é a observância dos mandamentos de Deus» (1 Cor 7,19).

Por honestidade teológica, devemos deixar claro que uma contradição aparece nas Escrituras acerca do ensinamento da fé. Por um lado, toda a Escritura parte do pressuposto que o homem pode decidir ou refutar a adesão a Deus na fé, por outro lado, todas as exortações dos Profetas, dos Apóstolos e do próprio Cristo parecem em vão. Isto porque uma pessoa pode ser condenada pelo fato de não ter simplesmente acreditado: «Quem crer e for batizado será salvo. Quem não crer será condenado» (Mc 16,16). Também Paulo apresenta a fé como condição que está no poder do homem e exorta a todos que: «a não receberdes em vão a graça de Deus» (2 Cor 6,1b) o mesmo se encontra em João quando afirma:

«Perguntaram então: “Que devemos fazer para praticar as obras de Deus?” Jesus respondeu: “A obra de Deus é que acrediteis naquele que ele enviou”» (Jo 6,28-29). Urge então não trair o Espírito Santo pois: «Não entristeçais o Espírito Santo de Deus, com o qual fostes marcados, como por um sinal, para o dia da redenção» (Ef 4,30).

Em sentido contrário, a fé é um dom de Deus: «Todo aquele que o Pai me dá, virá a mim, e quem vem a mim eu não lançarei fora. […] Jesus respondeu: “Não murmureis entre vós.  Ninguém pode vir a mim, se o Pai que me enviou não o atrair. E eu o ressuscitarei no último dia. Está escrito nos Profetas: ‘Todos serão discípulos de Deus’. Ora, todo aquele que escutou o ensinamento do Pai e o aprendeu vem a mim. Ninguém jamais viu o Pai, a não ser aquele que vem de junto de Deus: este viu o Pai. Em verdade, em verdade, vos digo: quem crê, tem a vida eterna» (Jo 6,37.43-47); «É pela graça que fostes salvos, mediante a fé. E isso não vem de vós: é dom de Deus!» (Ef 2,8); «A vós foi concedida a graça, não só de crer em Cristo, mas também de sofrer por ele» (Fil 1,29). Assim sendo, porquanto a fé paulina e joânica envolva o acto de vontade o que Paulo afirma é que a responsabilidade provém de Deus que trabalha no homem seja a vontade seja a sua aplicação: «Na verdade, é Deus que produz em vós tanto o querer como o fazer, conforme o seu agrado» (Fil 2,13). Até mesmo o bom pensamento através do qual o homem vê a bondade que a graça apresenta passa pela vontade de Deus: «Por nós mesmos, não somos capazes de pôr a nosso crédito qualquer coisa como vinda de nós; a nossa capacidade vem de Deus» (2 Cor 3,5). Para superarmos esta contradição temos de permanecer nas precisas palavras do Apóstolo Paulo e não podemos ir para além das mesmas: sem ajuda o homem não pode ganhar o dom da graça: «É pela graça que fostes salvos, mediante a fé. E isso não vem de vós: é dom de Deus!» (Ef 2,8), mas esta é oferecida abundantemente a todos, pois a vontade de Deus é que todos os homens sejam salvos: «Ele quer que todos sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade» (1 Tim 2,4). O amor de Deus para com o homem é de tal forma que estabeleceu uma Nova Aliança: «Do mesmo modo, depois da ceia, tomou também o cálice e disse: “Este cálice é a nova aliança no meu sangue. Todas as vezes que dele beberdes, fazei-o em minha memória”» (1 Cor 11,25) selada com o preço do sangue de Cristo: «De fato, fostes comprados, e por preço muito alto! Então, glorificai a Deus no vosso corpo» (1 Cor 6,20) de forma a oferecer todas as graças  todos os homens: «Deus, que não poupou seu próprio Filho, mas o entregou por todos nós, como é que, com ele, não nos daria tudo?» (Rm 8,32). Resumindo, sem a ajuda de Deus o homem não se pode mover para aceitar a graça de Deus ou conceber um bom pensamento que leva à salvação. Pois é Deus que trabalha no homem, seja na vontade como na ação, e que oferece ao homem os bons pensamentos.

Não foi ainda respondida a questão acerca do controle que o homem tem em rejeitar o dom de Deus. Paulo exorta os fiéis a não o rejeitar: «Sendo seus colaboradores, exortamos-vos a não receberdes em vão a graça de Deus» (2 Cor 6,1). Se o homem não rejeita o dom de Deus este crescerá. É aqui que está o paradoxo: por um lado, o homem pode tomar a decisão de boa vontade contra o dom de Deus, pois todas as decisões de boa vontade provém de Deus, e Deus não se pode negar a si próprio. Por essa razão tem de existir um outro sentido no qual o homem possa receber a graça sem ser em vão. De fato, é a graça que começa a trabalhar, mostrando ao homem os bons pensamentos e dando-lhe uma atitude favorável. A graça pode e vai mais além do que a ajuda que o homem lhe presta. Entretanto, não pode ir para além do consentimento humano. Esta ausência de interferência, sem qualquer decisão, é o suficiente para que a graça  realize e trabalhe no homem em sua vontade e ação. Está claro que o homem coopera para o completamento da graça que começou mesmo antes do homem. Na realidade, aquilo que o homem pode fazer é recebido no âmbito da fortaleza proveniente de Deus, pois: «Tudo posso naquele que me dá força» (Fil 4,13).

Chegados ao final deste artigo, entendemos as grandes linhas escriturísticas e estamos então em posição para tratar ainda dentro da Sagrada Escritura a questão do mérito e da graça. Dois conceitos que nos acompanharão nos próximos artigos sobre a grande Tradição da Teologia da Graça até aos nossos dias com um particular enfoque mariológico.   

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