O Rosário existe sem a Bíblia?

Introdução

Sem dúvida, toda a oração cristã tem um centro representado pela Liturgia, ápice de toda a ação da Igreja, fonte de toda a sua força (cf. Sacrosanctum Concilium 10). Por isso, o cristão está ciente de que a oração da Igreja, constituída pela Liturgia eucarística e pela Liturgia das Horas, forma sua vida de cristão e lhe fornece o alimento diário da Palavra e da Eucaristia, e isso, como lembrava João Paulo II, requer que «a escuta da Palavra se torne um encontro vital, na antiga e sempre válida tradição da lectio divina, que faz perceber nas Sagradas Escrituras a Palavra viva que interpela, orienta, molda a existência».

Respeitado o primado da Liturgia, o cristão – justamente para que a oração litúrgica se prolongue até se tornar oração incessante e se desenvolva e refine a arte do diálogo com Deus – pode recorrer a outras formas de oração, pois, sublinha a Sacrosanctum concilium, «a vida espiritual não se esgota na participação na só Liturgia» (Sacrosanctum Concilium 12). Na tradição cristã foram muitas e diversas as formas de oração com as quais os crentes renovaram e confirmaram sua comunhão com o Senhor. Entre as ações cultuais não litúrgicas sobressai, dentro da tradição ocidental do II milênio, o Rosário.

«Compêndio do Evangelho»

    O que é o Rosário? Apesar de alguns preconceitos, que tendem a relativizar e até mesmo a desvalorizá-lo, o Rosário é uma realidade original no plano da devoção, uma forma de oração não litúrgica, única na espiritualidade ocidental. O cardeal Newman o chama de «credo feito oração», enfatizando a fé nos mistérios que professamos no Credo. João Paulo II, na Carta Apostólica Rosarium Virginis Mariae n. 18, o define com as mesmas palavras de Pio XII, reiteradas depois por Paulo VI: «O Rosário “compendio do Evangelho”». Focamos nesta definição. Já no início da Carta, o Papa escreve: «na sobriedade dos seus elementos, o Rosário concentra em si a profundidade da mensagem evangelica inteira, da qual é quase um compêndio» (Rosarium Virginis Mariae 1).

    João Paulo II com o dom da Rosarium Virginis Mariae pretendeu conduzir o cristão a descobri-lo como precioso e salutar exercício de comunhão com os mistérios de Cristo através do coração de Maria. Como expressão de um intenso amor que se satisfaz somente na repetição, como autocompreensão antropológica do cristão. Hoje, estudiosos e comentadores do Rosário gostam de se concentrar na ligação Rosário/palavra de Deus, destacando sua peculiar característica de oração bíblica e essencialmente evangélica.

    Nesta linha se pronunciou Bento XVI em Pompeia em 19 de outubro de 2008, enquanto se realizava em Roma o XII Sínodo dos bispos sobre «A palavra de Deus na vida e na missão da Igreja». Disse o Papa: «de fato, o Rosário é todo entrelaçado de elementos tirados da Escritura. Há em primeiro lugar a enunciação do mistério, feita preferencialmente com palavras tiradas da Bíblia. Segue o Pai Nosso: ao imprimir à oração a orientação “vertical”, abre a alma de quem reza o Rosário ao justo atitude filial, segundo o convite do Senhor: “Quando rezais, dizei: Pai…” (Lc 11,2). A primeira parte da Ave Maria – também ela tirada do Evangelho – faz-nos ouvir novamente as palavras com as quais Deus se dirigiu à Virgem por meio do Anjo, e as de bênção da prima Isabel».

    Encontramos a mesma orientação bíblica em uma das Proposições sinodais, no n. 21, onde se lê: «o Sínodo recomenda a formação de pequenas comunidades eclesiais onde seja escutada, estudada e rezada a palavra de Deus, também na forma do Rosário como meditação bíblica». A razão pela qual o Rosário é oração essencialmente evangélica não diz respeito apenas ao que acabamos de destacar. Depende mais do fato de que quase todos os “mistérios” derivam diretamente de páginas evangélicas.

    Somente dois mistérios, o 4° e o 5° gloriosos, a Assunção e a Coroação de Maria, não são documentados pela Escritura, mas dela tiram a inspiração. «certamente, [os mistérios] não substituem o Evangelho, e nem mesmo evocam todas as suas páginas. Mas se aqueles considerados no Rosário se limitam às linhas fundamentais da vida de Cristo, a partir deles a alma pode facilmente se expandir sobre o resto do Evangelho» (Rosarium Virginis Mariae 29).

    Se o Rosário não esgota o Evangelho, contudo evoca o seu coração, o núcleo essencial, introduzindo a alma «ao gosto de um conhecimento de Cristo que continuamente bebe da fonte pura do texto evangélico» (Rosarium Virginis Mariae 24). Uma menção aos quinze mistérios tradicionais – que constituíram a fisionomia inconfundível do Rosário até à promulgação da Carta Rosarium Virginis Mariae – confirma esta orientação evangélica. Os «mistérios da alegria» têm origem nos primeiros dois capítulos do Evangelho de Lucas, os relatos da infância. Os «mistérios da dor» se baseiam nos episódios da paixão contados pelos quatro Evangelhos. Os «mistérios da glória» refletem a conclusão dos Evangelhos e seu prolongamento na nova era do Espírito e da Igreja.

    No entanto, se o Rosário tem uma índole profundamente evangélica, observa agudamente João Paulo II, os quinze mistérios tradicionais propõem à meditação contemplativa dos fiéis somente alguns eventos da vida de Cristo. Os mistérios da alegria chegam até o episódio de Jesus aos doze anos no templo, os da dor começam com o Getsêmani. Entre o Batismo e a Paixão não há traço de Jesus que exerce o seu ministério nos anos da vida pública. O fato é que não se pode compreender verdadeiramente a morte de Jesus se não no contexto de sua vida.

    Jesus foi morto precisamente pelo testemunho dado, com tudo o que era e com tudo o que realizou durante o seu ministério. «Quem dizeis que eu sou?» (Mc 8,29), é o desafio colocado pelo Jesus de Marcos. A resposta não está somente na sua morte, mas também no que o levou à morte. A adição – ou melhor, a inserção – por parte de João Paulo II dos “mistérios da luz” permite abraçar também os mistérios da vida pública de Jesus, nos quais ele se apresenta como «luz do mundo» (Jo 9,5). Esta integração torna o Rosário uma oração mais equilibrada.

    Nos mistérios da luz – batismo, Caná, anúncio do Reino, transfiguração, última ceia – Jesus é central. Enquanto a apresentação feita pelos Evangelhos reflete o encontro com ele Ressuscitado, ele todavia é firmemente o Jesus de Nazaré, aquele que «nasceu de mulher, nascido sob a lei» (Gal 4,4), «um em tudo semelhante aos irmãos» (Heb 2,17). Esta verdade que se quer aqui sublinhar é de vital importância para uma cristologia equilibrada: os mistérios da luz revelam a Luz-Cristo que é luz do mundo, e isto é, vida do mundo. Revelam o Verbo encarnado.

    O Rosário é, em última análise, uma meditação sobre o Filho de Maria, sobre aquele que revela o rosto do Pai e a sua presença na história. Consequentemente, após ter recordado a encarnação e a vida oculta de Cristo (mistérios da alegria), e antes de se deter nos sofrimentos da paixão (mistérios da dor), e no triunfo da ressurreição (mistérios da glória), João Paulo II convida a meditar também sobre alguns momentos particularmente significativos da vida pública de Jesus (mistérios da luz) (cf Se o Rosário não esgota o Evangelho, contudo evoca o seu coração, o núcleo essencial, introduzindo a alma «ao gosto de um conhecimento de Cristo que continuamente bebe da fonte pura do texto evangélico» (Rosarium Virginis Mariae 24).

    Uma menção aos quinze mistérios tradicionais – que constituíram a fisionomia inconfundível do Rosário até à promulgação da Carta Rosarium Virginis Mariae – confirma esta orientação evangélica. Os «mistérios da alegria» têm origem nos primeiros dois capítulos do Evangelho de Lucas, os relatos da infância. Os «mistérios da dor» se baseiam nos episódios da paixão contados pelos quatro Evangelhos. Os «mistérios da glória» refletem a conclusão dos Evangelhos e seu prolongamento na nova era do Espírito e da Igreja 19).

    A inserção dos mistérios luminosos, por um lado, confirma o Rosário como «compêndio do Evangelho», por outro, enriquece-o de conteúdo espiritual, como «verdadeira introdução à profundidade do Coração de Cristo, abismo de alegria e de luz, de dor e de glória» (Rosarium Virginis Mariae 19). Tal integração confere ao Rosário aquela completude «biográfica», que o torna de modo extraordinário adequado não só para contemplar, mas também para narrar a história de Jesus. Ele completa com a palavra rezada aquilo que o povo de Deus aprendeu ao longo dos séculos através da palavra pintada, isto é, através da imagem. A vida de Jesus, de fato, foi a mais alta fonte de inspiração para os artistas de todos os séculos e de todas as culturas.

    Na Rosarium Virginis Mariae, o Papa João Paulo II sugere uma série de atos que conferem dignidade e importância ao Rosário. Primeiramente, a enunciação bíblica do mistério. Esta pode ser acompanhada pela contemplação de um ícone que o represente, para concentrar imediatamente a atenção no que está prestes a ser meditado. O Papa não hesita em recorrer a “elementos sensíveis“, por uma razão teológica em sintonia com o Verbo encarnado e com a nossa condição humana: “é uma metodologia que corresponde à lógica da Encarnação: Deus quis assumir, em Jesus, traços humanos. É através da sua realidade corpórea que somos conduzidos a entrar em contato com o seu mistério divino” (Rosarium Virginis Mariae 29).

    Ainda mais importante é a sugestão de seguir a enunciação do mistério com “um passo bíblico correspondente“. Este pode ser “mais ou menos extenso“, de modo que se reconheça a prioridade e o primado da palavra de Deus, que é viva e eficaz (cf Hb 4,12) e da qual o Rosário constitui a meditação atualizada. Diz João Paulo II: “As outras palavras, de fato, nunca alcançam a eficácia própria da palavra inspirada. Esta deve ser ouvida com a certeza de que é palavra de Deus, pronunciada para o hoje e ‘para mim’. Assim acolhida, ela entra na metodologia de repetição do Rosário sem provocar o tédio que seria causado pelo simples recuo de uma informação já bem adquirida. Trata-se, portanto, de deixar ‘falar’ Deus” (Rosarium Virginis Mariae 30).

    A Escritura, ao nos comunicar o Senhor, nos dá a possibilidade de ouvi-lo, de estabelecer um diálogo com ele que se revela, de dar-lhe a resposta que ele mesmo sugere. A oração se desenvolve em resposta à penetração da Escritura sob a misteriosa ação do Espírito que a ditou e direciona cada discípulo de Cristo a se aperfeiçoar no amor. Esta abordagem bíblica enriquece certamente o Rosário, sobretudo quando um comentário adequado explicita os conteúdos dos mistérios individuais e os aplica à situação dos indivíduos e das comunidades.

    Mas mais do que adicionar palavras humanas à palavra de Deus, é fundamental interiorizá-la. Por isso, é conveniente que, logo após a sua proclamação, se observe algum momento de “silêncio” para fixar melhor o olhar no mistério: «a audição e a meditação se alimentam de silêncio». A redescoberta do valor do silêncio é um dos segredos para praticar a contemplação e a meditação. Entre os limites da nossa sociedade fortemente especializada em obras tecnológicas e mass-midiáticas, há também o fato de que o silêncio se torna cada vez mais difícil.

    Assim como na Liturgia são recomendados momentos de silêncio, também na recitação do Rosário uma breve pausa é oportuna após a audição da palavra de Deus, enquanto a alma se fixa no conteúdo de um determinado mistério (cf Rosarium Virginis Mariae 31). Aqui também, o Papa por um lado dirige a atenção para a palavra de Deus a ser meditada e personalizada interiormente, e por outro, para a sociedade do nosso tempo, onde tantas mensagens se sobrepõem, deixando pouco espaço para o silêncio. Portanto, é mais do que oportuno redescobrir momentos de silêncio, preenchidos com a Palavra salvífica.

    As oração do Rosário: respiração do Evangelho

    As orações evangélicas do Rosário, como mencionado, tanto as preces quanto a formulação dos mistérios do Rosário são derivadas do Evangelho.

    O “Pai Nosso“, devido ao seu imenso valor, é a base da oração cristã e nos vem diretamente de Jesus. Sua recitação no início de cada mistério coloca o orante em uma atitude filial diante do Pai, sempre presente nos mistérios de Cristo. «O Pai que está nos céus – lemos na Dei Verbum – vem com grande ternura ao encontro de seus filhos e entra em conversação com eles» (Dei Verbum 21).

    Após a escuta da Palavra e a focalização do mistério, é natural que a alma se eleve ao Pai. Jesus, em cada um dos seus mistérios, sempre nos conduz ao Pai, a quem ele continuamente se dirige, pois no seu ‘seio‘ repousa (cf Jo 1,18) (cf. Rosarium Virginis Mariae 32). Cristo deseja nos introduzir na intimidade do Pai, para repetirmos com Ele “Abbà, Pai” (Rm 8,15; Gal 4,6). São Cipriano diz: «Aquele que nos deu a vida da graça como Salvador, nos ensinou a orar como Mestre».

    E Jesus, no Pai Nosso, revela o próprio coração do Pai, fazendo-nos conhecer os pedidos e sentimentos que Ele deseja de Seus filhos. «É em relação ao Pai que Ele nos faz irmãos Seus e irmãos entre nós, comunicando-nos o Espírito que é Dele e do Pai ao mesmo tempo» (Rosarium Virginis Mariae 32).

    Além disso, é notável que o Rosário, como expressão de piedade popular, não segue o uso litúrgico, mas procede de acordo com sua própria natureza. Enquanto na celebração litúrgica das laudes matutinas e dos vésperos à noite, o Pai Nosso é colocado no final das invocações dos fiéis, no ápice da celebração, aqui a mesma oração é posicionada na base da meditação dos mistérios da salvação, para enfatizar que o Pai está na origem do plano salvífico que se desenrola ao longo do Rosário. «O Pai Nosso, colocado quase como fundamento da meditação cristológica-mariana que se desenvolve através da repetição da Ave Maria, torna a meditação do mistério, mesmo quando realizada em solidão, uma experiência eclesial» (Rosarium Virginis Mariae 32).

    A recitação da Ave Maria, repetida 10 vezes, torna o Rosário uma “oração mariana por excelência“. Extraída das palavras dirigidas a Maria pelo anjo Gabriel e por Isabel, a Ave Maria tem um caráter estritamente bíblico e, portanto, necessariamente orientado para Cristo: é a contemplação do mistério que se realiza Nele. A repetição da Ave Maria no Rosário torna-se júbilo, admiração, reconhecimento do maior milagre da história e cumprimento da profecia de Maria: “De agora em diante todas as gerações me chamarão bem-aventurada” (Lc 1,48).

    Compreendida e avaliada sabiamente, percebe-se na Ave Maria que «o caráter mariano não se opõe ao cristológico, mas o sublinha e exalta» (Rosarium Virginis Mariae 33). Além disso, aplicando um procedimento usado no livro de Judite, onde o que vem depois conta mais do que o que vem antes, a bênção de Maria prepara a bênção de Jesus, que é a razão última pela qual a Mãe é abençoada. Isso é bem demonstrado pelo paralelismo entre a aclamação de Ozias dirigida a Judite e aquela de Isabel a Maria: “Bendita és tu […] mais do que todas as mulheres que vivem sobre a terra e bendito o Senhor Deus que criou o céu e a terra” (Jdt 13,18); “Bendita tu entre as mulheres e bendito o fruto do teu ventre” (Lc 1,42).

    João Paulo II conclui que a Ave Maria é uma oração mariana, mas sobretudo cristológica porque o seu “centro” é o nome de Jesus. São João Paulo II enfatiza:

    às vezes, na recitação apressada, esse centro escapa, e com ele também o vínculo ao mistério de Cristo que se está contemplando. Mas é precisamente do destaque dado ao nome de Jesus e ao seu mistério que se distingue uma significativa e frutífera recitação do Rosário […]. Ela expressa com força a fé cristológica, aplicada aos diferentes momentos da vida do Redentor. É uma profissão de fé e, ao mesmo tempo, auxílio para manter desperta a meditação, permitindo viver a função assimilante, inerente à repetição da Ave Maria, em relação ao mistério de Cristo“.

    Rosarium Virginis Mariae 33

    Repetir o nome de Jesus constitui um caminho de assimilação, que visa a nos fazer entrar cada vez mais profundamente na vida de Cristo. Justamente para enfatizar mais esse caráter cristológico, João Paulo II afirma que é “um uso louvável, especialmente na recitação pública” acrescentar ao nome de Jesus “uma cláusula evocativa do mistério que se está meditando“. Esta cláusula tem a função de fixar a mente no mistério, impedindo o orante de se perder em distração.

    O “Glória ao Pai“, que conclui cada dezena de Ave Marias, é considerado o ápice da meditação. Ele desenvolve a fórmula trinitária pronunciada por Jesus ao enviar os discípulos ao mundo: “ide, pois, e fazei discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo” (Mt 28,19). Diz João Paulo II:

    a dossologia trinitária é o objetivo da contemplação cristã. Cristo é o caminho que nos leva ao Pai no Espírito. Se percorrermos esse caminho até o fim, nos encontramos continuamente diante do mistério das três Pessoas divinas a louvar, adorar, agradecer. É importante que o Glória, ápice da contemplação, seja bem destacado no Rosário. Na recitação pública, poderia ser cantado […]. De Ave em Ave, a glorificação trinitária a cada dezena, longe de se reduzir a uma rápida conclusão, adquire o seu justo tom contemplativo, até nos fazer reviver de alguma forma a experiência do Tabor, antecipação da contemplação futura: ‘É bom para nós estarmos aqui’ (Lc 9,33)”.

    Rosarium Virginis Mariae 34

    Os Mistérios da Luz

    Caráter Bíblico

    Na Carta Apostólica Rosarium Virginis Mariae, o Papa João Paulo II propõe a integração na meditação dos mistérios de Cristo com aqueles que se referem à sua vida pública. Eles podem ser chamados de forma especial “mistérios da luz“, pois são momentos da revelação luminosa do Reino, já presente na própria pessoa de Jesus. O Papa identifica cinco deles:

    1. O Batismo no Jordão;
    2. O milagre em Caná da Galileia;
    3. O anúncio do Reino de Deus;
    4. A Transfiguração;
    5. A instituição da Eucaristia.

    Nesta nova série, o caráter bíblico-teológico do Rosário foi enriquecido de maneira original. Não é sem importância considerar primeiramente o termo “mistério“. No uso comum, “mistério” significa algo oculto, a ser investigado, não imediatamente discernível. Na catequese do passado, “mistério” definia uma verdade revelada que nós não podemos compreender.

    No uso bíblico – e é isso que nos guia aqui – mysterion não é algo misterioso. Um “mistério” é uma intenção de Deus ou um Seu projeto, oculto – é verdade – no passado, mas agora revelado (cf Rm 11,25-26). A carta de Paulo aos Colossenses fala de um “mistério” mantido há muito tempo oculto por Deus, mas agora “manifestado aos Seus santos” (Col 1,26). Daí resulta que “mistério” é identificado com a pessoa de Cristo. Em resumo: é revelador. Os mistérios do Rosário revelam Cristo, guiam a compreendê-lo mais profundamente. É isso que queremos destacar, evidenciando o caráter bíblico dos “mistérios da luz“.

    O Batismo no Jordão

    A passagem do Batismo no Jordão é de grande importância para os três evangelhos sinóticos, mas ganha destaque especial no evangelho de Marcos (Mc 1,9-11), já que é com este evento que o evangelista inicia a apresentação de Jesus. Marcos não propõe uma genealogia ou episódios da infância, então o primeiro encontro com Jesus coincide com o momento em que ele vai ao Jordão para ser batizado por João.

    Muitos acorrem para ouvir o Batista, que fala de uma visita iminente de Deus ao seu povo e realizam o gesto penitencial do batismo, confessando seus pecados. Entre esta multidão, penitente e desejosa de acolher Deus em suas vidas, surge uma figura desconhecida, Jesus de Nazaré. Ele inicia sua “carreira” entre os pecadores e terminará sua aventura crucificado entre dois malfeitores. “Naqueles dias, Jesus veio de Nazaré da Galileia e foi batizado por João no Jordão” (Mc 1,9).

    Ao se colocar entre a multidão que vai ao Jordão para ser batizada, Jesus também anseia pela visita de Deus, invoca o perdão para Israel, e entra na água realizando o rito simbólico. O leitor do Evangelho fica perplexo com tudo isso. A resposta chega quando Jesus sai da água: os céus se abrem, o Espírito desce e uma voz celestial declara todo o seu amor por ele: “Tu és o meu Filho amado, em ti me comprazo” (Mc 1,11).

    Cada um de nós precisa, para viver, de um amor que o faça sentir-se filho, necessita de um reconhecimento que o declare “único” entre tantos. Aqui, no Jordão, ouve-se uma voz que vem do coração de Deus. É manifestação e confirmação de uma relação especial já existente entre Jesus e o Pai. Não se limita a dizer que Jesus é o Filho amado, mas que é Filho precisamente desta maneira, ou seja, na solidariedade com seus irmãos pecadores.

    A frase do Evangelho torna-se a síntese de três passagens bíblicas. Ela evoca, em primeiro lugar, o Salmo 2, no qual Deus proclama o poder de seu Messias a quem confia o governo das nações, cuja soberania se afirma, contudo, em meio a graves oposições. O tema da humilhação e da morte é ainda mais evidente no outro remetente bíblico, o episódio do sacrifício de Isaque, uma dura prova que, segundo o judaísmo, não envolve apenas Abraão, mas também o filho Isaque. Assim como Jesus, Isaque é “filho único e predileto” (Gn 22,2) e não é poupado da angústia da morte violenta (cf Hb 5,7).

    A terceira citação refere-se à figura descrita por Isaías do Servo do Senhor, uma personagem cheia do Espírito e que morre no serviço do plano de Deus para a salvação de Israel e de toda a humanidade. O encontro batismal com a inefável paternidade de Deus para com Jesus é, assim, o evento de um amor, que não se esgota na intimidade entre ele e o Pai, mas pede para se comunicar a cada homem. “Vi os céus abertos e o Espírito descer sobre ele como uma pomba” (Mc 1,10).

    Os céus abertos prenunciam o véu do Templo que se rasgará na morte redentora de Jesus, revelando um Deus que não tem mais segredos, pois sua última palavra é o Crucificado (Mc 15,38). O Espírito que desce como pomba lembra o fim do dilúvio e o início de um novo mundo, assim, com este Jesus batizado no Jordão, inicia-se a nova criação de Deus, aquela que não morre.

    O Milagre em Caná da Galileia

    Jesus realizou seu primeiro sinal em Caná da Galileia, manifestou sua glória e seus discípulos creram nele“: assim termina a narrativa joanina do primeiro milagre de Jesus (Jo 2,1-12), que para o evangelista é o “sinal” da revelação divina nele. A festa de matrimônio que está prestes a fracassar por falta de vinho representa, em primeiro lugar, a esperança de Israel que aguarda a libertação, mas é ameaçada pelas negações da história, e em segundo lugar, é uma figura da vida humana, que começa como uma festa promissora, mas em que a alegria rapidamente dá lugar à dura realidade desanimadora.

    O fato de Jesus começar com este milagre singular, que conclui a semana inaugural de sua missão (cf Jo 1,19-2,1), significa que a revelação da qual Ele é portador é uma nova criação e traz à humanidade uma alegria indefectível e completa. Caná, portanto, é a presença de Jesus como epifania de um Deus novo e diferente daquele de nossas expectativas. O Deus que Jesus revela não precisa de sacrifícios, mas vive entre a humanidade para compartilhar suas alegrias e preocupações.

    É o Deus da festa, aquele que deseja fazer a humanidade participar de sua alegria: “Como o noivo se alegra com a noiva, assim o teu Deus se alegrará por ti” (Is 62,5). Caná é também a presença de Maria, ou seja, de uma fé que espera do cumprimento das promessas de Deus e se torna uma súplica confiante, deixando a Ele o modo e o tempo da resposta: “Eles não têm mais vinho” (Jo 2,3). Maria é a mãe do povo que tem essa fé, e a essa fé aderem primeiramente os discípulos de Jesus (Jo 2,11).

    A Mãe de Jesus é a personificação concreta do povo de Deus, que cultiva a esperança na promessa e espera fielmente o cumprimento da Aliança: ela exerce sua preocupação materna, sua intercessão por esses noivos. A figura tradicional de Maria, como aquela que intercede continuamente pelo povo de Deus, tem aqui suas raízes bíblicas. Caná é sobretudo o anúncio da “Hora” de Jesus. Toda a missão de Jesus é um caminho em direção à Hora decisiva, a da cruz.

    Lá, ao que trouxe à humanidade o vinho novo será oferecido vinagre, mas lá estará novamente presente a Mãe de Jesus, que se torna a mãe do povo gerado pela cruz do Filho. E se Ele a chama de “mulher“, é justamente para apontar nela a nova Eva, a mulher da nova criação. Maria compreende a resposta de Jesus e, na certeza do esplendor de tanto amor, que se mostrará nessa Hora, exorta os servos a obedecerem ao seu comando. Esta é a sua primeira e última palavra no Evangelho de João e o seu testamento espiritual comunicado aos discípulos do Filho: “Fazei tudo o que Ele vos disser” (Jo 2,5).

    O Anúncio do Reino de Deus

    O terceiro mistério da luz convida a meditar sobre o primeiro momento da missão de Jesus, que se resume no anúncio do Reino de Deus. O Evangelho de Marcos sintetiza esse momento, introduzindo a atividade de Jesus na Galileia: “Depois que João foi preso, Jesus foi para a Galileia, pregando o Evangelho de Deus e dizendo: ‘O tempo está cumprido, e o Reino de Deus está próximo; arrependei-vos e crede no Evangelho‘” (Mc 1,14-15).

    Primeiramente, é evidente a conexão entre o início da missão de Jesus e a prisão do Batista. O texto evangélico lê literalmente: “depois que João foi entregue…”. Trata-se de uma maneira bíblica conhecida de se expressar, aludindo à misteriosa intervenção de Deus nos eventos humanos. Existe, portanto, um plano divino que se cumpre na entrega do Batista. Deus, em Sua vontade insondável, entrega o justo João nas mãos dos ímpios, mas até essa dramática “entrega” se torna fonte de salvação! Os homens podem aprisionar os justos, até mesmo eliminá-los, mas o plano divino para o bem da humanidade avança inexoravelmente.

    Para apreciar o que Marcos diz sobre a pregação de Jesus, é bom lembrar o que sabemos de Jesus até este ponto em seu Evangelho. Até agora, ouvimos duas coisas fundamentais sobre Jesus: no Batismo no Jordão, Deus o proclama Seu Filho amado, e durante o período de provação subsequente, ou seja, as tentações, Jesus permanece totalmente fiel à Sua identidade de Filho. Para os fariseus e os essênios, a chegada do Reino depende de seu esforço.

    Acreditavam que chegaria somente quando tivessem cumprido sua parte, ou seja, observado toda a lei. Jesus diz o contrário: “O Reino chegou“, já está ali, entre eles, independentemente do esforço feito. Quando Jesus afirma: “O Reino chegou“, não está dizendo que está prestes a chegar naquele momento, mas que já está presente. O que todos esperavam já estava presente no meio do povo, e eles não sabiam, nem percebiam (cf Lc 17,21). Jesus revela e anuncia aos pobres de sua terra essa presença oculta do Reino entre o povo.

    Para acolher o Reino de Deus presente no mundo, não são necessários esforços sobre-humanos, qualidades religiosas e morais elevadas, mas uma decisão acessível a todos: crer e converter-se. Crer: Jesus não pede apenas que se acredite em suas palavras, mas que se confie nele com fé, reconhecendo o anúncio da vinda do Reino como uma notícia verdadeiramente “boa” para a vida. O assentimento da fé se concretiza dando uma nova forma ao ser e ao agir: isso é precisamente a “conversão“, a outra condição exigida por Jesus para a acolhida do Reino.

    A Transfiguração

    A Transfiguração é o mistério da luz por excelência (Mc 9,2-10). Nela, a glória do Pai irradia no rosto de Jesus, enquanto a voz divina o acredita, perante as testemunhas escolhidas, como o Filho predileto. A primeira comunidade cristã referir-se-ia à Transfiguração como uma espécie de síntese do ministério público de Jesus (cf 2 Pe 1,16-19). O Evangelho de Marcos utiliza textos do Antigo Testamento para descrever a cena da Transfiguração.

    O evangelista situa o evento no início da viagem para Jerusalém (Mc 9,2-10) e o relaciona a uma escolha precisa de Jesus: “Ele tomou consigo Pedro, Tiago e João e os levou sozinhos a um monte alto. E foi transfigurado diante deles” (v. 2). “Subir ao monte” na linguagem bíblica é abrir o coração ao amor daquele Deus que no Monte Sinai estabeleceu o Pacto com seu povo. Neste horizonte de fé na Aliança, faz sentido a experiência dos três discípulos com Jesus no monte, sozinhos. Na solidão do monte, eles veem Jesus transfigurado, envolto em uma luz deslumbrante. Junto a ele aparecem as duas maiores autoridades do Antigo Testamento, Moisés e Elias: o primeiro representa a lei, o outro a profecia.

    O profeta Malaquias havia anunciado que Elias deveria retornar para preparar o caminho do Messias (Ml 3,23-24). O mesmo anúncio se encontra no livro de Eclesiástico (Eclo 48,10). Então, como pode Jesus ser o Messias, se Elias ainda não tinha retornado? Daí a pergunta dos discípulos: “Por que os escribas dizem que Elias deve vir primeiro?” (Mc 9,11). A resposta de Jesus é clara: “Elias já veio, e eles fizeram com ele o que quiseram, conforme está escrito sobre ele” (Mc 9,13). Jesus está falando de João Batista, assassinado por Herodes (Mt 17,13).

    Aquele Jesus que está a caminho de um destino de morte e cuja aparência será desfigurada pela dolorosa paixão, se revela de repente em sua identidade mais secreta. Isso é o que é concedido aos três discípulos intuir por alguns instantes. O pedido de Pedro para construir três tendas e assim prolongar a experiência espiritual da montanha nos oferece uma percepção valiosa: é preciso manter na rotina, no desgaste do cotidiano, a verdade sobre nós e sobre Deus que em certos momentos de escuta, de recolhimento, brilhou no coração.

    Conservar a memória da Transfiguração deveria dar aos três discípulos “privilegiados” a força para permanecerem próximos a Jesus nos momentos mais difíceis, como no Getsêmani. No monte, Pedro, Tiago e João são chamados a descobrir o sentido de todo discipulado como um obedecer a Deus, ouvindo a Palavra de Jesus como seu Filho amado e seguindo-o até se conformarem à beleza inalcançável que brilha em seu rosto desfigurado e transfigurado de Filho de Deus. O Tabor é para o cristão, não tanto o lugar da descoberta de Deus através da contemplação da beleza da natureza, mas o monte da revelação a que se acessa apenas pela fé, que se torna oração e obediência. É o monte do convite para saber ver o projeto divino sobre o homem, manifestado em Cristo, e perseverar nesse olhar de fé.

    A instituição da Eucaristia

    O quinto mistério da luz é dedicado à contemplação da instituição da Eucaristia. Os textos bíblicos que falam explicitamente sobre isso são os Sinóticos e 1 Cor 10-11. As palavras da instituição em Marcos e Mateus provavelmente chegaram até nós através da mediação da Liturgia da Igreja de Jerusalém, enquanto em Lucas e Paulo são mediadas pela Liturgia da comunidade de Antioquia.

    A preocupação de Marcos é conectar esta ceia de despedida à Páscoa judaica (Mc 14,12-25): no v. 14 ele fala explicitamente de um banquete pascal. Isso significa que, em sua cronologia, Jesus morre durante a festa da Páscoa. Neste ponto, Marcos é seguido por Mateus e Lucas. O IV Evangelho afirma com igual clareza que Jesus morre na véspera da Páscoa (Jo 18,28). Na verdade, parece que a última ceia foi uma solene ceia de despedida e não uma tradicional ceia pascal.

    Esta foi o ápice de uma série de refeições compartilhadas por Jesus com seus discípulos. Jesus segue a prática de um chefe de família em uma refeição festiva judaica, partindo um pão e distribuindo os pedaços. Ele “tomou o pão“, “abençoou“, “partiu” e “deu“: são os mesmos gestos e as mesmas palavras nos dois relatos em que Jesus alimenta as multidões (Mc 6,41; 8,6). Sem dúvida, a correspondência é intencional. Naquele tempo, os discípulos “não tinham compreendido o significado dos pães” (Mc 6,52). Agora o mistério é revelado. Jesus é “o único pão” (Mc 8,14) para judeus e gentios, seu corpo é dado e seu sangue é derramado por todos.

    Paulo e Lucas (1 Cor 11,24-25; Lc 22,19) acrescentam o mandamento de fazer em memória dele o que Jesus fez naquela noite. O mandamento é dirigido não a indivíduos, mas à comunidade de discípulos, pois celebrar a eucaristia é o ponto alto do encontro da comunidade e a fonte da vida eclesial. A Igreja está consciente de que a celebração eucarística, vista como o local de apropriação sacramental da morte e ressurreição de Cristo, a constitui em sua essência como “Corpo de Cristo” (1 Cor 10,17) e como comunidade do tempo da salvação convocada por seu Senhor como sinal de esperança no mundo.

    Dos cinco mistérios, apenas este último não parece, à primeira vista, um evento luminoso. A Eucaristia aparece como mistério de ocultação e de kenosis da presença de Cristo sob os sinais sacramentais do pão e do vinho. Mas quando se considera que a Eucaristia anuncia a morte e a ressurreição do Senhor, é possível perceber sob a simplicidade do sinal a glória do mistério pascal, com toda a sua carga de graça, amor e esperança.

    Realmente podemos concluir que o Rosário deixa para trás um rastro luminoso de Evangelho, guiando milhões de homens e mulheres para Jesus Cristo e para a santa e adorável Trindade.

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