O Anúncio a Maria segundo Beato Angélico (IIª parte)

Na Anunciação da cela 3 o espaço é simplificado.

Da sala só se vê o caminho de entrada, na extrema direita; o evento ainda acontece no alpendre elevado do gramado cercado; mas a mata além do limite do muro que se vislumbra à esquerda desapareceu, e o gramado é apenas um indício deste lado do muro; uma ala do pórtico desapareceu; a sala abre-se a nascente de onde vem a luz que marca as sombras no chão ao centro e na parede à direita. É tudo, não uma parte como no corredor, que se tornou uma cena supérflua: é à contemplação reservada dos frades pregadores que o afresco se dirige, como parece confirmar a presença na pintura de São Pedro de Verona, o mártir dominicano.
A impressão é mais uma vez forte e imediata, um eco direto do Cântico dos Cânticos:
«Você é um jardim fechado, minha irmã, minha esposa, um jardim fechado e uma fonte selada» (4,12).
A sala abre-se novamente à nascente, e nós, de frente para a luz do poente, vemos o acontecimento que se passa entre o céu e a terra, numa espécie de prolongamento da intimidade da sala de clausura dos dois lados do muro. O espaço é complexo, muito elegante. Além não existe Éden; o jardim arborizado da Anunciação do corredor foi transformado em um jardim muito arrumado com palmeiras e vasos de terracota, os ciprestes, ali alinhados atrás da paliçada, aqui estão dispostos em uma avenida cênica com um muro de fronteira, também decorado, juntos com o coroamento do claustro, com vasos de terracota voltados para a fonte central; é o jardim do Cântico que o amado personifica:
«fonte de jardim, fonte de água viva» (Ct 4,13a.15a)
Em frente à janela central que introduz a luz do leste no afresco do corredor não existe nem o emblema da pomba em que insiste a celebração ritual do painel para o armário de prata

nem o silêncio adorador que paira na misteriosa contemplação da cela do convento, em frente desta centralidade, que é preciosa nas reminiscências do Cântico, a cela do vinho, e de Catarina de Sena, a cela do sangue e a cela do autoconhecimento, Frei João Angélico coloca Maria simplesmente sentada num banco do refeitório, não no trono onde ele a havia colocado em Cortona ou Montecarlo, quase com uma elevação completa, já que está de frente para Gabriel e está além dele, vestida com uma túnica de luz e um manto de sombra, olhos sonhadores como sempre, lábios movidos, muito levemente alcançando o Anjo, entre a sala e nós.


Na cela do convento, Maria está ajoelhada em um banquinho. Todo o seu corpo é absorvido pelas vestes cor-de-rosa realçadas pela luz que vem do Oriente.
Aqui temos o máximo de abstração e de intimidade. As linhas do pórtico em arco são reduzidas ao mínimo e nos trazem para a cena. Espaço e proporção são confiados a uma nuance muito sensível, quase um semblante. O arcanjo quase parece erguer-se da terra, simples e imponente, com um gesto recolhido e uma atitude reverente. Maria está de joelhos, sem manto, surpreendida na oração, com um livro entreaberto na mão, o que pode significar a memória das profecias: redigida num rosa impalpável que a faz parecer transparente, está atenta, mais do que às palavras do anjo, ao Espírito superveniente e ao cumprimento do mistério. É de fato o momento da encarnação do Verbo: Fiat. A curva suave dos arcos conecta as pessoas de cima e expressa o seu diálogo: mensagem e escuta, proposta e acolhimento.
A maravilha desta pintura advém da sobriedade absoluta do conjunto, que corresponde à renúncia a qualquer descrição no relato evangélico: a leveza da cor das duas personagens é acompanhada pelo alvorecer do soalho e reboco, sobre o qual as abóbadas do afeto desenhadas como sombras pela luz da manhã que vem de fora.
O Comentário sobre a saudação angélica de Tomás de Aquino (1.1.2) descreve-nos a cena desta forma: «Maria é cheia de graça também no sentido de que a graça de sua alma é redundante em seu corpo […] de modo que sua carne concebeu o Filho de Deus. De acordo com Hugo de São Vitor, o amor do Espírito Santo ardia tanto em seu coração a ponto de realizar maravilhas em sua carne até ao ponto em que Deus-Homem nasceu».
O uso de adorar a Encarnação do Senhor é sugerido pelas Meditationes Vitae Christi franciscanas de Pseudo-Bonaventura, e o Beato Angélico o manterá tanto no painel da Anunciação quanto no painel do Natal.
No armário de prata feito para a SS.ma Annunziata dos Servos de Maria, em Florença, continua a insistência no capítulo 4 do Cântico dos Cânticos:
«Como és bela, minha amiga, como és bela!
Teus olhos são pombas entre teus cachos…
fio roxo são teus lábios, tua boca está inundada de graça…
tu és toda linda, minha amiga, não há mancha em ti
… coração, minha irmã, noiva,
tens sequestrado meu coração com um único olhar» (Ct 4,1.3.7.9)
Colocando-a de joelhos no chão, não no banco, que ela mostra descuidar, Frei João destaca o acontecimento que aconteceu entre a terra e o céu, entre Maria e o Espírito que, na fonte central, vem até ela. Ela está em traje de cerimónia, celebrando as bodas sagradas, túnica vermelha e manto azul que, idêntico ao hábito do Verbo Encarnado, só mudará nos painéis que se seguem à Ressurreição e onde se une à glória do seu Senhor, analogamente ao que acontece a Jesus na Transfiguração no lava-pés e na Via Crucis, na Ressurreição ou quando Maria partilha a sua glória.
Variante ao ar livre: a arquitetura se abre nos fundos de um jardim, o chamado Hortus Conclusus, para simbolizar a virgindade de Maria na concepção e no parto. Aqui também está presente o Espírito Santo em forma de pomba entre as pontas dos ciprestes. O Anjo aponta para o céu com a mão e os escritos nas margens superior e inferior relatam respectivamente a profecia de Isaías e o anúncio do Anjo. Na cena da Anunciação, com textura de perspectiva central, Maria está reunida em oração em um átrio luminoso que remete ao Hortus conclusus, uma antologia de símbolos marianos. Os ciprestes que podem ser vistos atrás de Maria aludem aos do monte Sião:
Eu cresci tão alto quanto os ciprestes das montanhas do Hermon (Eclo 24,13-17).
A balaustrada aberta para a paisagem ao fundo remete a Maria como à porta coeli. Maria acolhe com prudência pensativa e atenta a palavra do anjo, que tende o dedo a apontar para o céu. O cenário, repleto de referências arquitetônicas alusivas ao novo templo em que Deus virá habitar com os homens, situa-se num sótão aberto ao céu e ao horizonte, à luz da manhã que prenuncia a glória do meio-dia. O tradicional livro da tribuna é substituído por folhas que relatam em latim a profecia de Isaías e as palavras do anjo: «Eis que no ventre conceberás e darás à luz um filho a quem chamarás Jesus» (Lc 1,26-38).
Na Anunciação do corredor que Gabriel entrou pelo arco que o fez curvar, o espaço arquitetônico do Homem não conteria nem o Anjo nem a Maria que, nas três pinturas, têm proporções maiores que a natural, e agora se estende intensamente para a Virgem numa pausa de uma estática impossível, detendo as asas de íris setiformes na elaborada túnica debruada nas bainhas e no peito, bordado na parte inferior e nas mangas, o rosto em puro perfil, mais para nós do que para ela.
No painel ele também é colocado em adoração de joelhos. A sugestão vem também da reverência franciscana devida de toda criatura ao Verbo que se fez carne em Maria.
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