Maria, da Anunciação à Eucaristia

Da Anunciação à Eucaristia

O mistério da Anunciação resume-se em um “sim” ao projeto salvífico do Pai: “Eis que conceberás um filho, darás à luz e o chamarás Jesus… Eis-me aqui, sou a serva do Senhor; faça-se em mim segundo a tua palavra” (Lc 1,31.38). Maria possui uma grande capacidade de escuta e, portanto, uma grande capacidade de resposta: ela escuta (Lc 1,29), admira (Lc 2,33), contempla (Lc 2,19.51), acompanha como intercessora e silenciosa na doação (Jo 2,5; 19,25).

O projeto salvífico do Pai não tem fronteiras no tempo e no espaço. Deus já havia falado de muitas maneiras na história da humanidade e especialmente na história de Israel, mas “nestes dias, falou-nos pelo seu Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas, e por meio de quem também fez o mundo” (Hb 1,2). Maria acolheu Jesus, o Verbo encarnado: nele, o Pai proferiu a palavra definitiva sobre o homem e a sua história. O anjo lhe disse que Jesus era “Filho do Altíssimo” (Lc 1,32), porque “aquele que nascer será santo e será chamado Filho de Deus” (Lc 1,35). Este projeto do Pai, comunicado a Maria na Anunciação, é a misericórdia de Deus “de geração em geração” (Lc 1,50). O projeto salvífico do Pai torna-se a missão de Maria. Assim, ela proclamará a mensagem salvífica na casa de Isabel, que carregava o precursor em seu ventre (Lc 1,44), mostrará Jesus aos pastores e aos magos (Lc 2,16; Mt 2,11).

A fé de Maria ajudará a descobrir o significado dos sinais de Jesus, através dos quais “seus discípulos creram nele” e o seguiram “com sua mãe” (Jo 2,11-12). A concepção virginal de Maria aconteceu “na plenitude dos tempos“, quando “Deus enviou seu Filho, nascido de mulher… para resgatar os que estavam sob a lei, a fim de que recebêssemos a adoção de filhos” (Gl 4,4-5). Essa concepção levará Maria à decisão de permanecer firmemente “ao pé da cruz“, a fim de ouvir de maneira nova o projeto salvífico e missionário do Pai cumprido por Jesus: “Mulher, eis aí o teu filho!” (Jo 19,26).

Da Anunciação à cruz, Maria ouve, admira, contempla, intercede, se doa… As palavras do anjo e as palavras de Jesus revelam o projeto salvífico do Pai. Para Maria, as palavras “eis o teu filho” significavam ver em cada ser humano um “Jesus vivo” que deve nascer. Ela poderia recordar a oração de Jesus na última ceia: “Pai… tu os amaste como me amaste… o amor com que me amaste esteja neles e eu neles” (Jo 17,23.26). Maria entra no mistério da salvação universal: “Eis o teu filho“… então, os amarás como me amaste… porque eu estou em cada um deles…

Maria, desde a Anunciação, torna-se a Mãe do “pão da vida“, porque recebe Jesus para comunicá-lo a todos. Na verdade, “a Virgem foi chamada a oferecer toda a sua humanidade e feminilidade para que o Verbo de Deus pudesse tomar carne e se tornar um de nós… Maria, ao consentir na mensagem de Gabriel, não perdeu nada de sua verdadeira humanidade e liberdade” (Papa João Paulo II, Fides et Ratio n. 108). A comunidade eclesial celebra sempre a Eucaristia lembrando-se de Maria, em cujo seio o pão da vida se formou e cuja presença está relacionada com Cristo imolado. A “memória” de Maria, “Theotokos“, «ajuda a comunidade eclesial a aprofundar a “memória” eucarística, como presença, sacrifício, comunhão, ação especial do Espírito, missão e escatologia. Maria é “modelo da atitude espiritual com que a Igreja celebra e vive os divinos mistérios» (Papa Paulo VI, Marialis cultus n. 16).

A presença ativa de Maria na comunidade que celebra a Eucaristia

Um santuário mariano está sempre centrado na celebração eucarística. “Santa Maria do Presépio” (Sancta Maria ad Praesepe) é a mãe do “pão da vida“, nascido em Belém (“casa do pão“), que é oferecido a todos. A presença de Maria na comunidade leva à escuta da Palavra e à associação com Cristo Redentor, cujo sacrifício se torna presente na Eucaristia. Desde os primórdios do cristianismo, na celebração eucarística, Maria é a “memória” de uma Igreja que, como ela, deseja meditar a Palavra de Deus em seu coração (cf. Lc 2,19.51) e também deseja se unir esponsalmente a Cristo redentor (Jo 19,25-27).

A Igreja segue a atitude de se reunir, como no Cenáculo, “com Maria, a Mãe de Jesus” (At 1,14). Hoje, como na comunidade eclesial primitiva, Maria está presente na celebração da “fração do pão” (At 2,42). Essa realidade eucarística-mariana se manifesta de forma especial nos santuários marianos, onde os fiéis vêm para ouvir a Palavra de Deus e se associar a Cristo, presente na Eucaristia, sob a orientação de Maria, associada a Cristo Redentor.

Se procurarmos o fundamento teológico desse atitude eucarística e mariana da Igreja, devemos nos inspirar na harmonia da revelação e nos conteúdos da fé. Quando Jesus disse “isto é o meu corpo” (“minha carne“), “isto é o meu sangue” (Lc 22,19-20), trata-se da “carne do Filho do Homem” (Jo 6,53). Quem come o seu corpo e bebe o seu sangue participa de sua própria vida: “Quem come a minha carne e bebe o meu sangue permanece em mim, e eu nele… aquele que come de mim viverá por mim” (Jo 6,56-57). A Igreja está ciente do eco dessas palavras no coração de Maria, que vê Jesus vivo em cada cristão que participa da Eucaristia. Agora, o mesmo corpo nascido de Maria está glorificado e presente no sacramento eucarístico. A Igreja professa essa fé por meio do hino eucarístico: “Ave, verdadeiro corpo nascido da Virgem Maria… Jesus, filho de Maria” (texto do séc. XIV).

Por sua natureza, a Igreja é eucarística e mariana. A carne glorificada e eucarística de Jesus, concebida virginalmente por Maria, é carne como a nossa, mas em relação à glorificação e ao novo mundo restaurado por Cristo. “Carne“, na mentalidade semita, significa o ser vivo (humano) como um todo: toda a pessoa em sua dimensão de limitação. Mas agora, essa carne glorificada é “carne para a vida do mundo” (Jo 6,51). Quando Jesus diz “Eu sou o pão da vida” (Jo 6,48), ele está comunicando sua vida ao oferecer sua “carne“. A Eucaristia é o banquete dado gratuitamente (Is 55,1-3), preparado para todos os povos (Is 25,6-9).

Maria, figura da Igreja, acolhe todos os povos em seu seio para comunicar a eles o pão da vida. Isso ocorre por meio da Igreja: “As palavras que Jesus pronuncia do alto da Cruz significam que a maternidade de sua genitora encontra uma ‘nova’ continuação na Igreja e por meio da Igreja, simbolizada e representada por João” (Redemptoris Mater 24). “Maria abraça, com sua nova maternidade no Espírito, a todos na Igreja e… por meio da Igreja” (Redemptoris Missio 47). Sob essa perspectiva mariana e eclesial, podemos compreender melhor a relação entre as bodas de Caná (Jo 2), o anúncio do pão da vida (Jo 6), a manifestação de Maria como Mãe e o lado aberto de Cristo (Jo 19). Maria é a “mulher“, mãe e figura da comunidade que nos nutre com o pão da vida. Caná é o início dos sinais sacramentais, resumidos na água, vinho, pão, sangue.

A Igreja nasce do lado aberto de Cristo, como o sangue e a água que simbolizam os sacramentos. Jesus entrega à Igreja: sua mãe, os dons do Espírito e os sinais sacramentais, entre os quais a Eucaristia é especialmente destacada. Portanto, o povo cristão vive a maternidade espiritual de Maria em relação à Eucaristia. Maria sempre orienta em direção à Eucaristia, como sinal privilegiado e central de todo o mistério eclesial:

“Sua maternidade é particularmente sentida e vivida pelo povo cristão na sagrada Ceia – a celebração litúrgica do mistério da redenção – na qual Cristo, seu verdadeiro corpo nascido da Virgem Maria, está presente. Com razão, a piedade do povo cristão sempre reconheceu uma profunda ligação entre a devoção à Virgem santa e o culto da Eucaristia: isso é um fato observável na liturgia tanto ocidental quanto oriental, na tradição das famílias religiosas, na espiritualidade dos movimentos contemporâneos, inclusive juvenis, e na pastoral dos santuários marianos. Maria guia os fiéis até a Eucaristia”

(Redemptoris Mater 44)

A realidade de Maria, que deu carne e sangue a Cristo, de alguma forma se faz presente na celebração eucarística e em todo o mistério eclesial. O mistério da Encarnação se estende, de alguma forma, na celebração eucarística. “A Virgem foi chamada a oferecer toda a sua humanidade e feminilidade para que a Palavra de Deus pudesse se tornar carne e ser um de nós… gerando a Verdade e guardando-a em seu coração, ela a compartilhou com toda a humanidade para sempre” (Fides et Ratio 108).

A ação do Espírito Santo na Eucaristia e em Maria

A vinda do Espírito Santo no ventre de Maria (cf. Lc 1,35) é um prelúdio de Pentecostes e também da ação do Espírito Santo no mistério eucarístico, como uma presença do mistério de Cristo Redentor. “Foi a partir de Pentecostes que começaram os ‘Atos dos Apóstolos’, da mesma forma que, pela obra do Espírito Santo na Virgem Maria, Cristo havia sido concebido, e pela descida do Espírito Santo sobre Cristo que orava, Ele havia sido impulsionado a começar seu ministério” (Ad Gentes 4). Lembramos as palavras de João Paulo II no radiomensagem de domingo, 7 de junho de 1981, após as segundas vésperas de Pentecostes na Basílica de Santa Maria Maior: “A obra mais magnífica realizada pelo Espírito Santo por meio da encarnação… foi concluída com o pleno consentimento e o humilde ‘faça-se’ daquela que, tornando-se a Mãe de Deus, disse de si mesma: ‘Eis-me aqui, sou a serva do Senhor’… Maria de Nazaré, a serva do Senhor da estirpe de Davi, tornou-se a verdadeira Mãe de Deus: Theotokos“.

A invocação do Espírito Santo (“epíclesis“) na celebração eucarística também recorda o mistério que ocorreu no seio de Maria e que, na celebração eucarística, ocorre de uma nova maneira: tornar presente Jesus sob as espécies eucarísticas e transformar todos nós, também em relação a Maria, Mãe da Igreja. São João Damasceno explica a “epíclesis” com estas palavras: “Você se pergunta como o pão se torna o corpo de Cristo?… Saiba que é pela ação do Espírito Santo, da mesma forma que, graças à Santíssima Virgem e ao mesmo Espírito Santo, o Senhor, por si e em si mesmo, assumiu a carne humana“.

A “memória” de Maria na oração eucarística (cujo texto remonta pelo menos ao século III) tem, portanto, uma dimensão pneumatológica e eclesiológica. O mistério da Encarnação, pela obra do Espírito no ventre de Maria, agora acontece de uma maneira nova por meio da presença de Cristo na Eucaristia, ao mesmo tempo em que Maria está presente no meio da comunidade eclesial. A antiga Missa do dia 1º de janeiro (século IV) na oração sobre as oferendas diz assim: “Senhor, que os dons que oferecemos no altar sejam aceitos pela bondade do Espírito Santo, que encheu o seio de Maria com o esplendor da sua verdade“.

Ao invocar o Espírito Santo (“epíclesis“) para transformar o pão e o vinho no corpo e no sangue do Senhor, recorda-se a presença e o exemplo de Maria. Com ela e como ela, a Igreja diz “sim” (“amém“), tornando-se portadora de Cristo. O relacionamento entre a Eucaristia e Maria é aprofundado à luz da ação do Espírito Santo. O texto do Comum de Santa Maria no sábado, tempo de Pentecostes, e as Missas votivas da Virgem fazem alusão a Maria como portadora do Espírito, modelo de fidelidade e figura da ação do Espírito na Igreja. “Tu quiseste, ó Pai, que, ao anúncio do anjo, a Virgem Imaculada concebesse a tua Palavra eterna e, envolta na luz do Espírito Santo, se tornasse o templo da nova aliança: faze-nos aderir humildemente à tua vontade, assim como a Virgem confiou na tua palavra” (Oração Coleta de 20 de dezembro).

Nos textos litúrgicos, esse relacionamento é lembrado, especialmente durante o Advento. A oração sobre as oferendas no IV Domingo do Advento diz: “Aceita, ó Deus, os dons que apresentamos no altar e consagra-os com o poder do teu Espírito, que santificou o seio da Virgem Maria“. Esta oração ratifica a relação entre o Espírito Santo e o sacrifício eucarístico, ao mesmo tempo em que oferece um paralelo perfeito entre o que aconteceu em Nazaré com a Virgem Maria (a Encarnação do Senhor) e o que acontece na celebração eucarística. Os mesmos conteúdos são recolhidos na antífona da Oração Eucarística II no Advento II/A: «Do seio virginal da Filha de Sião brotou aquele que nos alimenta com o pão dos anjos e jorrou para toda a humanidade a salvação e a paz».

No Prefácio Comum VI, retirado da Oração Eucarística II, oramos ao Pai com estas palavras: “Ele (Jesus) é a tua Palavra viva… feito homem pela obra do Espírito Santo e nascido da Virgem Maria“. Portanto, na Oração Eucarística, pedimos que o mesmo Espírito Santo que veio no ventre de Maria para a concepção virginal de Jesus “nos una em um só corpo“, ou seja, nos transforme em Jesus “para a comunhão com o corpo e o sangue de Cristo”. A Eucaristia é o “memorial da morte e ressurreição” do Senhor (Sacrosanctum Concilium 47), e, portanto, em sua celebração, lembramos o fruto da redenção em Maria e nos santos, ao mesmo tempo em que lembramos a colaboração de Maria na mesma redenção.

Em cada época histórica, inclusive na nossa, o Espírito Santo impulsiona a Igreja a rezar “com Maria“, para se tornar “um só coração e uma só alma“, corajosa na evangelização, por meio da escuta da Palavra e da celebração eucarística (cf. At 1,14; 2,42-47; 4,31-35). Esses momentos eucarísticos e marianos são os mais frutíferos na história da Igreja. Paulo VI, na exortação apostólica Evangelii Nuntiandi, afirmou: “Na manhã de Pentecostes, ela (Maria) presidiu com sua oração ao início da evangelização, sob a ação do Espírito Santo: que ela seja a estrela da evangelização sempre renovada que a Igreja, obediente ao mandato de seu Senhor, deve promover e realizar, especialmente nestes tempos difíceis, mas cheios de esperança” (EN 82).

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