A Mariologia geométrica de Piero della Francesca (4ª parte)

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Uma Nossa Senhora com o Menino, recentemente atribuída a Petrus de Burgo e que se pensou durante séculos que pertencesse a Piero della Francesca, tece a ligação com as paisagens criadas através de uma pintura de luz, proporções divinas e um olhar contemplativo, onde misteriosamente matemática e pintura se unem numa nova certeza dos espaços, em que os homens e as coisas do mundo descem de uma espécie de previsão espacial sonhadora. Permanecendo absortos, impassíveis e silenciosos guardiões dessas leis, guardiões privilegiados de uma alegre poesia do mínimo em que o sopro de uma nova intimidade das distâncias ressoa entre coisas, acontecimentos e estados de espírito.

Nossa Senhora oferece uma rosa vermelha, aparentemente branca pelo reflexo da luz, a Jesus que está sentado no seu colo nu, num simbolismo que lembra a Paixão. Um anjo vestido de vermelho aponta para o Menino. Ao redor da Virgem Mãe, os anjos se alinham em semicírculo, compostos e sóbrios em sua habitual qualidade escultural, mas régia.

Talvez a pintura mais conhecida de Piero, seja o Retábulo de Brera por causa do lugar onde está guardado, e porque tem como tema um diálogo sagrado.

Este nome indica as pinturas que contêm a Nossa Senhora e o Menino em seus braços, na companhia de santos e, às vezes, até de meros mortais. 

Neste caso, o painel também apresenta Federico da Montefeltro, o comitente da obra, claramente reconhecível no homem de armadura, ajoelhado à direita. Deve-se notar que a posição dos personagens geralmente respeita uma hierarquia precisa: a Nossa Senhora é a única a estar sentada; os santos estão de pé, os mecenas de joelhos.

O painel representa quatro anjos, próximos à Mãe do Senhor, e seis santos, três de cada lado: à esquerda estão São João Batista, São Bernardino de Sena e São Jerônimo; à direita, São Francisco, São Pedro mártir e São João evangelista.

A obra é um admirável exemplo dessa ordem formal que é algo mais do que uma simples escolha estilística: é a confiança num universo baseado numa harmonia de matriz racional e matemática. Tudo é simétrico e preciso, especialmente a arquitetura ao fundo. Estamos dentro de uma igreja, no cruzamento da nave com o transepto, bem em frente à abside. O espaço é, portanto, uma representação não apenas de um lugar sagrado, mas de uma ordem cósmica baseada na clareza e na racionalidade.

Um detalhe original deste espaço é a forma da bacia absidal, uma concha. Um ovo de avestruz está pendurado no topo. O significado do ovo encontra-se em uma crença medieval, segundo a qual os ovos de avestruz eram chocados pelo calor do sol e, portanto, eram um símbolo da maternidade virginal de Maria. 

Provavelmente também a concha remete ao mesmo significado, pois acreditava-se que dentro a pérola se formava sem intervenção masculina pelos raios das tempestades. Esses detalhes remetem ao mistério do nascimento de Jesus, entendido como um milagre que oferece a salvação ao homem.

A obra La Madonna di Senigallia é uma peça de fundamental importância para a reconstrução das manifestações artísticas de seu autor, pois atesta a passagem da têmpera para a pintura a óleo, inspirada em pintores flamengos como Jan Van Eyck, na época conhecido nas cortes de Ferrara, depois em Urbino. De fato, foi a pintura flamenga que trouxe o uso da pintura a óleo para a Itália, oferecendo a possibilidade de um controle mais refinado da luz. 

Piero della Francesca, portanto, constrói imagens com cor e constrói a cor com luz. A hora de suas meditações pictóricas é o meio-dia, quando a luz do zênite apaga as sombras da terra. Em Piero, as cores parecem nascer pela primeira vez como elementos de uma invenção do mundo. A primeira lição nesse sentido, o Mestre de San Sepolcro aprende durante sua estadia em Florença, assimilando a grande lição de Domenico Veneziano: uma pintura luminosa que constrói as figuras na luz, não sobrepostas, mas harmoniosamente integradas ao desenho. 

A Madonna de Senigallia é ainda mais fascinante porque é a luz oblíqua de qualquer dia; aquela luz que, infiltrando-se pelas vidraças da esquerda, revela o interior de uma casa majestosa, mas não opulenta, onde uma muito jovem Nossa Senhora assistida por dois anjos adolescentes apresenta, com doce gravidade triste e como que nublada por presságios sobre seu filho melancólico.

Uma atmosfera de extrema concentração permeia a sala simples. Nas prateleiras existe um jarro que deveria conter hóstias e, portanto, aludir à Eucaristia e um cesto, uma lembrança da pureza e do papel salvífico de Maria que acolhe Jesus em seu seio como o cesto acolheu Moisés (cf Ex 2,3-6).

A obra confere o monumental e o íntimo, as duas linhas em que a sua poesia se manifesta. Monumentais são o volume dos corpos, a compostura das figuras e a sobriedade dos trajes que, no entanto, se abrem à elegância das jóias dos anjos e à transparência refinada da Virgem. A atmosfera deste interior de uma casa do século XV é íntima, quase doméstica. A arquitetura cortada pela luz que entra pela esquerda permite que Piero se detenha nos efeitos de iluminação, uma clara referência ao mundo flamengo. A obra como um todo aparece limpa, essencial, fixada naquele típico silêncio estático que é o encanto deste pintor.

A Natividade de Londres é talvez a última obra do Mestre de Sansepolcro. O Menino jaz no chão, num canto do manto de Maria, segundo a iconografia tradicional do Norte que se reflecte também nas características do Menino. 

A Mãe, de formas suaves e finas, figura de marfim extremamente elegante, contempla o Menino deitado numa aba do manto; 

São José senta-se despreocupadamente em uma sela em uma pose de sabor doméstico, absolutamente íntima

os dois animais ao fundo são representados com grande realismo. 

Atrás, um dos pastores aponta para o cometa. 

Um grupo de anjos músicos canta, mas toca instrumentos sem cordas. 

O ponto de fuga é ligeiramente elevado, como no Pala di Brera, e dá uma visão quase aérea da paisagem espetacular do rio, que se estende ao longe com árvores, arbustos e paredes salientes que lembram alguns desenhos de Leonardo jovem. A obra de Piero, quase quadrada, é linda, a ponto de despertar intensa emoção. Revela religiosidade e misticismo e um profundo senso de mistério, juntamente com nostalgia de experiências passadas, que são evocadas como vivas e atuais.

O burro zurrando é adicionado ao coro dos anjos, um quinteto perfeito, que toca e canta na entrada da cabana para dar glória a Deus. Em poucas palavras, a presença do burro significaria que todas as criaturas, cada uma à sua maneira, participam da alegria pelo nascimento de Cristo, ou pela vinda de Deus à terra. Mas o zurro do burro corresponde à nota dissonante na harmonia do coro angélico. De fato, no exato momento do nascimento do divino Menino, a alegria se mistura com a dor, porque o plano de redenção dos homens, querido por Deus, levará Cristo à cruz. As demais criaturas animais presentes na obra, porém, não participam do júbilo desse nascimento extraordinário. 

Na verdade, você pode ver o boi ao lado do burro, uma pica no telhado da cabana e um pintassilgo em primeiro plano. Nenhum desses animais, no entanto, muge ou canta. Segue-se que a presença do burro zurrando tem sua razão de ser um som desagradável, desafinado. A sabedoria popular também contrasta o burro e seu zurro com a música e sua harmonia. Agora, o burro de Piero mas está muito próximo do anjo tocando violino ou lira no braço. Se acrescentarmos a isso que o cabelo do burro é vermelho (sinal do diabo), que a pica na cabana muitas vezes aludia ao diabo e o pintassilgo com cardos em primeiro plano remete aos sofrimentos do martírio de Cristo, o significado da pintura parece clara.

A arquitetura aqui é apenas insinuada na ruína e no fundo em que se vislumbra Borgo Sansepolcro. O espaço é pontuado pela paisagem, pelas curvas do rio em que as árvores se refletem, numa abertura luminosa e adoradora, que traz o céu à terra, o canto dos anjos na pobreza do presépio.

Deixe-se encantar por uma palavra do Senhor, surpreenda-se novamente com a manjedoura e a Cruz, saiba se maravilhar com o Logos que está dentro de cada carne, com o Eterno que se insinua no instante, com o Pão que se torna Corpo, por um Deus que sorri, faz de Maria uma silenciosa mestra de espanto, aquela que guarda e medita no seu coração. Porque a história de uma criança é escrita antes de tudo no coração de sua mãe. Ela guardou as Boas Novas. Ela guardou com cuidado porque até os fragmentos são preciosos para a memória do coração.

Tendo ficado cego em seus anos extremos, Piero della Francesca morreu em Borgo San Sepolcro em 12 de outubro de 1492, dia da descoberta da América. Suas imagens da Virgem, calmas, estáveis, silenciosas, basicamente hieráticas, marcadas por um sentido de sacralidade grave e solene, trazem de volta ao coração o eco de uma poesia: 

Arca da nova aliança

entre o homem e a natureza, volta, 

na caravela que carrega o Senhor sob a vela branca

(David Maria Turoldo).

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