Leonardo da Vinci e a Virgem grávida de esperança


Na Galeria Uffizi, em Florença, existe um desenho atribuído ao mestre Leonardo, representando uma cabeça feminina que tem evidentes afinidades, tanto que pode ser considerada como preparatória para a pintura da Virgem das Rochas.


Em comparação com a “Virgem Benois”, nesta composição existe um maior distanciamento entre as figuras e o fundo, e um claro-escuro menos difuso e mais direto, com luzes e sombras que respiram especialmente nos rostos sem se perder nos contornos matizados, modelando com excepcional vigor as formas até parecerem tridimensionais e quase tangíveis. O olhar da Criança, voltado para um ponto fora do espaço pictórico, é um apelo irresistível para o espectador, atraído para dentro da pintura e envolvido numa relação de comunicação direta com a imagem sagrada.

Em 25 de abril de 1483, o painel da Virgem das Rochas foi encomendado a Leonardo e aos irmãos de Predis pela Confraria da Conceição. A pintura, agora no Louvre, mostra a Virgem com Jesus, o Menino Batista e um anjo em uma caverna, um cenário fantástico de sombras, uma construção bizarra de lajes de pedra e estalactites, abertas por cortes em direção à luz distante do pôr do sol.

Leonardo em Milão havia encontrado uma grande pintura em desenvolvimento: das lunetas da Capela Portinari aos afrescos do Banco dei Medici estavam diante dele as altas criações de Foppa e as paisagens de Bergognone, que se opunham ao princípio plástico dos toscanos e o soberano ritmo florentino a perspectiva, a luz, o espaço di Lombardia.

Uma pintura diferente que enfrentou seus problemas de luz, de sombra, de espaços distantes, de atmosfera. Numerosos desenhos por direito próprio ou dispersos ao longo de seus escritos mostram que Leonardo segue a observação direta e ao mesmo tempo seus sonhos, com seu sinal preciso, leve, luminoso, evocador perfeito de formas, luzes, sombras e movimentos do coração.

Suas figuras são baseadas no que pode ser definido como uma concretude idealizada. A Virgem dos Rochedos, autografada por Leonardo, foi comprada diretamente pelos franceses por meio de negociações confidenciais e secretas com os frades de São Francisco, e substituída na igreja por outra quase o mesmo pintado por Ambrogio de Predis, mencionado no contrato, com a ajuda do próprio Leonardo.


As duas tábuas realmente modificam o esquema tradicional da Imaculada Conceição com os anjos musicais, a lua sob os pés, a coroa de estrelas. Aqui a harmonia vem sobretudo daqueles elementos da natureza aos quais o artista deu tão forte destaque e com os quais as figuras humanas estão tão profundamente sintonizadas. A razão última do privilégio mariano é a maternidade divina.

As rochas juntam uma luz velada ao redor do grupo, enquanto a luz do céu nevoento, esverdeado, aquoso recua ao longe, sobre um mundo fantástico de picos imersos nas brumas. O espírito melancólico da noite penetra no sorriso da Virgem, vago, incerto no dia da morte. O relevo floresce onde a luz toca as coisas, desaparecem onde a sombra as engole; a forma é assimilada, com seu movimento instantâneo e suave, ao fluido criado pela sombra da caverna e pelos clarões dourados que atravessam seus véus. Cada vez mais, na arte de Leonardo, a cor perde importância entre as luzes que penetram na água e no céu.
Conclusão

Uma epifania do devir, traduzida como é para momentos de altíssima suspensão, mas momentos, momentos muito perfeitos, mas sobre os quais paira a consciência da efêmera qualidade da realidade, belos momentos parados no ponto em que a virada do hora os leva a perecer, presentes muito harmoniosos, mas como que rachados pela sensação de sua irrepetibilidade.

Ó ciência maravilhosa, diz Leonardo sobre a pintura num impulso onde existe todo o sonho de perfeição do Renascimento mas também toda a sua fragilidade, reservas na vida as belezas transitórias que têm variado continuamente ao longo do tempo.

Toda a pintura de Leonardo é realmente movida pela consciência da mutabilidade da realidade fenomenal, análoga àquela que o cientista tinha muito forte, da mutabilidade da realidade física. E assim como o cientista percebe que os rios, escavando os vales, mudam constantemente a paisagem, ou que a natureza tem prazer em fazer vidas e formas contínuas, o pintor é muito sensível à infinita variedade que importa a intervenção do tempo na aparência do real.

E é justamente nessa visão suspensa, como se pairando entre dois piscar de olhos e prestes a se desgastar, que acontece ao nos aproximarmos da pintura de Leonardo com mais frequência e sentir melhor a razão da expressão fugaz e fugaz de seus rostos, do matizado e inacabado de suas paisagens, suas explorações de sombras, seu interesse pelo gesto e pelo estado de espírito que já parecem quase desaparecer.

Assim como sua predileção pelas luzes crepusculares e os fundos voltados para o azul e os momentos em que a atmosfera se torna mais indecisa e impalpável e mais evidente a essência indescritível da beleza do mundo e a qualidade elevada e transitória da alegria que dela recebemos: como se, ao fixar a perfeição de uma hora que está aí rachar, se quisesse preservá-lo da cilada do tempo, este rápido predador das coisas humanas, que em breve terá desfeito.

Leonardo é um homem de fé, naquela forma típica do século XV toscano, certamente diferente do catolicismo dedicado à Reforma Católica, mas um apaixonado investigador do Mistério divino e de sua manifestação na história humana.

Leonardo na Anunciação colocou a Virgem Maria no limite de uma cavidade de sombra, tocada pela lâmina oblíqua de luz que vem do fundo, e que ilumina seu rosto junto com a atmosfera que a circunda. Ou seja, ele a havia confundido com a natureza, com a brisa da manhã, com a luz da aurora, mas também a havia empurrado para se separar dela e transcendê-la pela graça daquele sim. O sentimento da natureza, aquilo pelo qual sentimos pulsar o ritmo da nossa vida em uníssono com o do cosmos, liga-nos a Deus, abre-nos à escuta, faz-nos tocar as chagas do Ressuscitado.

Leonardo pinta a Anunciação em um canto do palácio renascentista, mas no átrio do jardim, a Virgem das rochas em uma caverna aberta ao mundo, a Nossa Senhora Litta e a Virgem dos fusos em uma paisagem ensolarada. As grandes e luminosas cenas nos dizem que o milagre da Encarnação envolve, além de Maria, toda a criação. A luz muito clara da manhã suaviza os contornos das figuras, tornando as Virgens pintadas por Leonardo, grávidas de esperança.
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