Iconografia mariana e a procura do belo nas Igrejas

Sessenta anos depois do Concílio, vale a pena recordar como na Sacrosanctum concilium se reafirma a condição litúrgica da identidade sagrada na arte cristã. Especificamente, entre os parágrafos 122 e 129, lembra-se que:
«entre as atividades mais nobres do engenho humano, estão totalmente incluídas as artes liberais, especialmente a arte religiosa e o seu ápice, a arte sacra. […] A Santa Madre Igreja sempre favoreceu as artes liberais e sempre buscou o seu nobre serviço, especialmente para que os objetos destinados ao culto resplandeçam verdadeiramente em dignidade, decoro e beleza, sinais e símbolos de realidades sobrenaturais: ela mesma formou artistas […]. Com especial solicitude, a Igreja cuidou para que as alfaias sagradas com sua dignidade e beleza servissem ao decoro do culto, admitindo na matéria, na forma e no ornamento as mudanças que o progresso da tecnologia introduziu ao longo dos séculos».
A Igreja nunca considerou como próprio um determinado estilo artístico, mas, segundo a natureza e as condições dos povos e as necessidades dos diversos ritos, admitiu as formas artísticas de cada época, criando assim, ao longo dos séculos, um tesouro artístico a ser preservado com todo cuidado […]. Mesmo a arte contemporânea de todos os povos e países deve ter liberdade de expressão na Igreja, desde que atenda às necessidades dos edifícios sagrados e ritos sagrados com a devida reverência e honra. Deste modo poderá juntar a sua própria voz ao admirável concerto de glória que homens nobres elevaram nos séculos passados à fé católica».
A liberdade de expressão indica a possibilidade por parte da Igreja de fazer sua própria a pesquisa artística em que o artista combina especificamente a Tradição e o Magistério com a realidade de sua contemporaneidade. Se Tradição e pesquisa convergem em uma intencionalidade capaz, onde a escuta e a expectativa alcançam o acerto da imagem, todas as batalhas culturais para afirmar ou negar a realidade da pesquisa são legitimadas pela realidade cultural em que se move. Ou seja, diante da verdade do Magistério está a pesquisa artística que se encarrega da sinceridade da pesquisa e o magistério tem a capacidade e a inspiração do discernimento: houve um Papa que impôs a Michelangelo a realização da decoração na Capela Sistina, e houve um papa que queria apagar a mesma decoração.
Diante da afirmação da secularização e do nihilismo ou do ecletismo espiritualista geral, como reafirmar a forte identidade da cristologia da imagem, do valor litúrgico da imagem?
O desafio da Sacrosanctum concilium é levar a arte a enfrentar a radicalidade do testemunho evangélico, onde justamente a liberdade de expressão ilustra a verdade da pesquisa ao combinar a pesquisa artística com a vocação. Se a arte nos leva à imagem, a imagem leva ao sentido profundo da expressão e ao valor simbólico da imagem, se esta imagem não quer ceder ao decorativismo, à superficialidade da narrativa e ao passivo medíocre, não pode ficar fechada em si mesma.
Saber ouvir, decifrar e perceber os sinais dos tempos significa ter a capacidade de decifrar e afirmar as antropologias do mundo contemporâneo, e usar a expressão artística para sublinhar e afirmar a verdade do testemunho.
Existe uma especificidade mariológica nesse contexto, que é o contexto da espiritualidade e da teologia, da liturgia e da pastoral, historicamente identificável entre a segunda metade do século XIX, passando pelo Concílio Vaticano II (1962-965) e que chega ao nosso século XXI.
É possível circunscrever uma especificidade mariológica, no sentido de carregar na iconografia mariana a uma superabundância de culturas e também a nossa antropologia contemporânea.
Pode-se afirmar que as tipologias iconográficas referentes a Maria pertencem ao imaginário de uma teologia artística que se desdobra ao longo da modernidade, partindo do contexto pós-tridentino e rememorando a crise pós-iluminista, até ao caldeirão das novidades históricas.
Pode-se dizer que a tipologia mariana se propõe como excelente amostra para verificar os temas de uma espiritualidade e de uma cultura teológica capaz – ou mesmo incapaz – de afirmar em nossa modernidade contemporânea o esplendor do testemunho mariano, entre o evangelho e o apocalipse.
Pode-se afirmar que na filigrana dos problemas artísticos e litúrgico-espirituais subjacentes à tipologia da iconografia mariana, podemos perceber também as motivações eclesiais relativas à especificidade feminina na tradição cristã e eclesial. A especificidade do papel da mulher recupera do legado da concentração enclausurada, do mundo místico e pastoral das beguinas – vida comunitária não monacal feminina no serviço aos necessitados nascida no séc. XII no centro da Europa-, até à atenção carismática a favor da paróquia.
Recuperando a memória recente
Com a bula Ineffabilis Deus, em 8 de dezembro de 1854, Pio IX definiu o dogma da Imaculada Conceição concluindo um processo teológico-espiritual que começou com São Justino e Santo Irineu e passou pela oração de Dante:
«Ó Virgem mãe, filha do teu filho,
humilde e alta mais que criatura,
de um só conselho eterno termo fixo,
tu és aquela quem nossa natura
tanto nobilitou que o seu feitor
não desdenhou de ser sua feitura»
(Paraíso XXXIII, 1-6)
Para alcançar artisticamente às duas summae da iconografia mariana, nos palácios papais e na basílica de Loreto: no palácio papal do Vaticano, a sala contígua às de Rafaello, na qual Francesco Podesti (1800-1895), confortado pelo Cardeal Antonelli, com quem estipulou o contrato (20 de janeiro de 1857), começou a trabalhar a partir de 1858, depois de ter feito o esboço da cena da Proclamação do Dogma,
em 1856, para terminar em 1861, quando na Proclamação – na parede principal – houve também o Debate da Imaculada Conceição – parede poente e o coroamento da imagem da Virgem – parede nascente.
Na basílica de Loreto, em cuja cúpula Cesare Maccari (1840-1919)

implantou a cosmologia mariana, após Ottaviani destacar as pinturas rasgadas de Pomarancio (1890). De 1890 a 1895 Maccari começou a lidar com a Litanie Loreto –

que havia sido oficializada pela igreja com o decreto Quondam multi de Clemente VIII, em 6 de setembro de 1601 – na cúpula, e em 16 de abril de 1895 esses afrescos foram inaugurados.

De 1895 a 1908 desdobrou o conto mariano culminando com o Dogma da Imaculada Conceição, no tambor da cúpula: em 16 de julho de 1908 foi inaugurado.
Com Podesti e com Maccari temos duas amostras privilegiadas de uma poética artística, em que a grandiloquência narrativa-ícone-gráfica é exaltada na identidade eclesial. Os dois ciclos iconográficos desafiadores refletem a evidência catequética subjacente ao convite dogmático. As iluminações cromáticas constroem plasticamente as figuras dos personagens, destacando nas composições cenográficas os dados narrativos do discurso explícito no qual se pretende envolver e educar o espectador.
Quem entra no salão dos palácios pontifícios e quem fica no perímetro sob a cúpula de Loreto, aqui parece ser sugado para uma dimensão ascensional subliminar, na presença de uma pintura que quer se apresentar como uma realidade de visão profundamente espiritual, na aparência da pintura oferecida para visualização.
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